Diante daqueles palcos eu me emocionei, mergulhei na liberdade da arte, cantei a plenos pulmões as músicas que povoaram a minha infância naquele jardim com a cômica e cósmica conjunção astral que permitiu o reencontro do Caximir. Descobri a potência e crítica do teatro brasileiro e como se estivesse a abrir uma concha, encontrei a pérola das artes cênicas em Mato Grosso. Foi ali que aprendi com os ensinamentos literários de Marcelino Freire e Julian Fux, que me incentivaram a colocar pra fora as minhas palavras e dar voz às minhas histórias. Naqueles corredores me perdi em inúmeros percursos de exposições desde artistas consagrados aos bons e novos nomes da nossa terra, como André Gorayeb, e foi ali entre um olhar e outro, que entrevistei pessoas incríveis como Jaloo e Lourenço Mutarelli. De peito aberto, vivi todas as experiências possíveis. Girei no Palco Giratório com peças que me tocaram pela leitura da realidade brasileira, pela força do encontro, pela magia que é invocada no palco quando um único banco pode dar vida a tanta vida: Caranguejo Overdrive, Das Águas, O Jardim. Foi lá onde vivi pela segunda vez OraMortem e constatei a sensibilidade dos nossos artistas, que me arremeteram para um outro universo, uma outra vida, paralela à minha, onde tive a certeza de já ter sentido todas aquelas sensações. E lá eu me senti representada na minha condição de mulher por Thereza Helena em Inhamor.

Oficina de dança no Sesc
Apresentações de teatro no jardim do Sesc
Participantes do debate no SESC: Miro Spinelli, Mc Linn da Quebrada e a doutora Jaqueline

Aquele lugar que abrigou tanta arte, tantos debates e expressões. Foi lá onde tive o primeiro contato com o Casé Angatu e escutei atenta as importantes falas dos povos indígenas, onde presenciei debates sobre mulheres e feminismo, sobre as diversidades artísticas, identidades de gênero, e abracei a Linn da Quebrada e a Jaqueline Gomes de Jesus pelas suas considerações tão necessárias sobre o transfeminismo e a população LGBTQI+, com sua representatividade e presença na arte. Ali dividi cervejas, lanches, poemas, palavras, sonhos. Foi ali que ouvi a poesia de uma menina de quinze anos incentivada pelos pais a participar de um curso de literatura e a de uma senhora com seus 70 anos dividindo a riqueza de suas lembranças e amor à terra. Foi lá que eu vi as castanholas da Estela Ceregatti alçarem voos altos nas asas das suas canções. E lá que vi a Raquel Mützenberg e a Millena Machado darem vida aos textos do grupo (h)aliterários. Foi lá que eu vi a Raquel parir a Maiêutica e brinquei com bonecos como se nem fosse gente grande.

A peça OraMortem

Quanta arte aquele lugar nos proporcionou… Perambulo pelas minhas próprias recordações. São tantas lembranças que me preenchem, chega a ser difícil escolher o que mais me tocou ou me modificou. A minha vontade de viver a cultura, a minha fome de música, poesia, teatro, literatura, cresceu e foi alimentada por estar ali, respirando possibilidades, trocando com pessoas de todo o Brasil, compartilhando experiências, florescendo o debate e fortalecendo as lutas.

A peça O Jardim
Artista Jaloo

Desde o final do ano passado tenho recebido relatos constantes de amigos e amigas que denunciam o retrocesso cultural que se instalou no Sesc de Mato Grosso. Até então palco de resistência, potência, compartilhamento, acolhimento e de impulso à arte e artistas, a nova direção confirmou em entrevista para o site O Livre que a ideia é transformar o Sesc em um shopping cultural. Na reportagem da brilhante jornalista Maria Clara Cabral, fica explícito o caráter da nova gestão, onde o conservadorismo ganha a pauta e o Sesc infelizmente deixa de ser um ponto de encontro e convergência das artes e da cultura.

Inhamor – Foto Fred Gustavos
Deságua – Exposição de GORA no Sesc

Assim revela a repórter: “A diretoria do Sesc Mato Grosso afirma estar equilibrando demandas nas diferentes áreas de atuação da instituição e pretende focar cada vez mais em seu público “essencial”: o trabalhador comerciário. Isso significa, na prática, priorizar serviços e atividades voltadas a famílias, além de unificar unidades e equipes.” O diretor do SESC MT, Carlos Alberto Rissato admitiu ao Livre que “a proposta pode reduzir o montante destinado às ações sociais da instituição, como o programa Cultura, sem impactar o empresariado”. Nesta nova roupagem, até a programação do Palco Giratório, onde peças de todo o país circulam em múltiplos palcos, incentivando o intercâmbio cultural, será revista. No cenário nacional, o Sistema S tem sido alvo de constantes ataques, por parte do governo federal, bem como alvo de operações de corrupção envolvendo a alta diretoria. Contudo, é inegável o trabalho desenvolvido na área cultural, artística e social.

Raquel Mützenberg e sua Maiêutica
Peça Carne exibida no Sesc

Não podemos perder o que significa o Sesc para a cultura mato-grossense. Não podemos perder a casa que abriga tantos artistas, que dá espaço democrático para múltiplas vozes, quebrando a hegemonia das narrativas, conectando Cuiabá com a profusão da produção artística brasileira. Esta perda é imensurável. É irreparável. Perdemos. E continuaremos perdendo ainda mais caso não levantemos as nossas vozes, travemos nossas lutas, reivindiquemos os nossos direitos. É preciso erguer as nossas armas e lutarmos pelo nosso arsenal: atirem palavras, poesias, poemas, flores, amores, sonhos, letras, canções, livros, pinturas, desenhos, grafites, vídeos, imagens, sons. Atirem arte. É a nossa guerra. E ela já começou. Nos daremos por vencidos ou empunharemos nossas cores para travar essa batalha?

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here