A luz é baixa e o cheiro de incenso é forte. O cenário é a terra. Um corpo em repouso jaz sob a terra. Com ares professorais ela explica sobre a sua carapaça. Exoesqueleto.  Então a guitarra, a bateria e o baixo tocam seus primeiros acordes. Quando havia mangue, caçavam caranguejo simulando chuva com um bumbo. A água cai, escorre, o estrondo faz com que o corpo na terra suba em meio à fumaça e dance no ar.

A voz grossa no microfone narra sua história enquanto o corpo na terra vibra em espasmos. A palavra e o apetite, começam e terminam na boca. “Andar para frente é invariavelmente andar para trás”. O homem que caça caranguejos, no mangue, o caranguejo que caça dejetos. Os dejetos que vem do homem, que acredita que pode despejar seus dejetos. Rá. O som fica mais potente e o corpo corre deitado na terra. Como um caranguejo. Ou como um homem em meio ao bombardeio da guerra. Homem ou caranguejo.

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Entre o discurso apressado sobre a sua vida no mangue, misturada a uma vida na guerra, a entre ser homem ou animal, metamorfoseado como Kafka, um outro corpo se desenha caranguejo. Ele, catador de caranguejos, era agora um homem que ressurge dos escombros da guerra. Um exército de homens desnutridos, doentes, desvalidos. Abandonados à própria sorte, à morte, à fome, à uma guerra de outros homens, de sentidos que não os pertencem. Pobres, inválidos, ex-escravos, aqueles que classificavam como escória. Da lama ao caos, do caos a lama. É a história do mangue, do Brasil, a guerra do Paraguai. Depois da guerra, Cosme volta ao Rio de Janeiro. A música é forte e marca o ritmo da peça.

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Foto: João Julio Mello – Divulgação

Mas da vida que se lembra, de se abaixar no manguezal para catar caranguejos, só sobrou a fumaça. O ano é 1860, mas podia ser ontem, hoje, amanhã. A cidade não para. A cidade cresce. O manguezal aterrado para a Coroa passar com suas carruagens tornou-se o centro do Rio de Janeiro. Obras públicas intermináveis. Dinheiro público escorre pelo ralo como a água da falsa chuva para chamar os caranguejos de seus buracos. Cave o buraco e se esconda como um caranguejo, como um homem. A lama lava, a lama leva.

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Para voltar ao país, Cosme responde aos interrogatórios das autoridades coercitivas. Participou de ação terrorista? Contraiu alguma doença? Estado de sanidade? Passivo ou ativo? Versátil. Bem vindo ao Brasil. O catador de caranguejos com tiques que percorrem todo o corpo como eletricidade em movimentos remetem ao animal e suas formas. Procura qualquer trabalho para aplacar a fome. “Você agora é minha propriedade, você e todos os seus descendentes”. Escravos em troca de migalhas, de dejetos.

Uma prostituta paraguaia conta com o sotaque apressado a história política do país até os dias atuais. Todos os presidentes. A lama de Mariana. Até chegar ao dia de ontem, 24 de maio. Brasília em chamas. O povo lutando contra as reformas arbitrárias dos políticos. Enquanto as risadas ecoam pelas referências contemporâneas, outro homem caranguejo se despe. Ele fica nu e mistura argila numa bacia grande, lentamente passa as mãos por todo o corpo. Alcança cada pedaço de pele e a pinta com a argila escura. Ele termina e com o corpo nu coberto de argila fica parado na posição de caranguejo.

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Um dia caçador, no outro a caça. As luzes se apagam e o outro homem caranguejo se movimenta com luzes em fios emaranhadas em seu corpo com linhas pretas desenhadas. A música é mangue beat, o som potente de rock’n’roll trilha toda a linha do tempo que se mistura em muitas histórias. O homem caranguejo cai na rede. A rede se movimenta freneticamente com a música. “Vocês acham que estou confortável nessa posição”, ele grita ainda agachado rompendo o silêncio que o circundava.

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E você está ali sendo jogado de um lado para o outro, um caranguejo, um homem, o tempo que devora a todos. A palavra é o apetite. Quem tem fome não espera. Mas não há caranguejo para alimentar tantos homens. Há dejetos para serem devorados ou seremos devorados pelos nossos próprios dejetos. Seremos só a carapaça vazia. Um exoesqueleto.

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Foto Elisa Mendes / Divulgação

*Caranguejo Overdrive (RJ) foi apresentado no Palco Giratório no dia 24 de maio em Cuiabá. Para saber mais: Aquela Cia de Teatro

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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