Falar sobre si, sobre ser mulher em um mundo patriarcal, sobre ser mulher negra, mulher indígena, mulher que não pode decidir sobre seu próprio corpo, falar sobre as cicatrizes visíveis e invisíveis que marcam seus corpos, nossos corpos. Falar sobre essas violências que ocorrem todos os dias, com mulheres, meninas, jovens mulheres, mulheres idosas. O relato da própria vida gera potência necessária para a transformação destes corpos, destes espaços, destas culturas.

Os depoimentos de mulheres marcaram o segundo dia do Seminário Políticas Culturais: Direitos e Diversidade do SESC Arsenal. A dinâmica ganhou vida com as narrativas, que contam suas próprias histórias, embasadas nestas experiências próprias que marcam toda a extensão do que são. Estas mulheres  partilharam suas dores, superações, desafios, resistências, existências. Dividiram o que as habita.

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Uma jovem liderança indígena: Watatakalu Yawalapíiti (MT) – Pertence a etnia Yawalapiti. Fundadora e membro da diretoria da Associação Yamurikumã das Mulheres Xinguanas. Criada para liderar as mulheres de sua tribo do Alto do Xingu. Seu pensamento corre para contar como funciona em sua cultura, como as mulheres fazem para serem ouvidas. Os homens da aldeia possuem a Casa dos Homens, uma oca grande bem no centro, mas as mulheres são proibidas de entrar. Elas resolvem fazer a Casa das Mulheres (estão para terminar), mas o espaço será democrático para abrigar seus filhos, maridos, irmãos. As tradições, a cultura, são repassadas pela oralidade, das mães para os filhos e filhas. Lá na Casa das Mulheres elas pretendem ensinar, para revitalizar o que estão perdendo com as influências externas do mundo, como o grafismo indígena, tecelagem, línguas, enfim, uma escola tradicional. Manter vivo o que vive nelas.

Feminismo indígena. Ela conta uma lenda de uma índia que passou-se por homem para poder tocar uma flauta que não podia sequer ser vista pelas mulheres. Ela foi arrancada de sua casa a noite e enterrada viva. Horas depois, foi desenterrada, e voltou entoando uma canção. E assim, todos souberam o que aconteceu.

E também que as mulheres se rebelaram contra os homens, e possuem um ritual que durante 30 dias, trocam os papeis. Neste período, elas  só dançam enquanto eles fazem o biju, pegam mandioca, água, cuidam dos filhos.

Então, outra narrativa soma-se ao momento e a voz de Kessidy Kess (Cuiabá – MT) fala sobre os meandros da sua história. Estudar em uma escola pública, enquanto tentava encaixar-se nos grupos formados, com as violências cotidianas e contato com brigas, estupros, drogas, e até abuso de um professor com alunas da escola. Em meio a todas estas interferências, Kessidy que naquela época preferia ser chamada pelo segundo nome, Sabrina, refugiava-se em sua poesia, em seus desabafos escritos no caderno. Com isso, chamou a atenção de uma professora e começou a trilhar um caminho diferente: o da cultura e da arte.

Com 14 anos, apresentou-se pela primeira vez, mandou uma rima e viu que era aquilo mesmo. Na Praça Alencastro, no “Quinta Alternativa” finalmente, ela se encontrou consigo mesma. Depois disso, morou em uma casa coletiva e foi aí, que teve contato com o feminismo através de uma viajante negra. Assim, passou a amar seu corpo, seu cabelo, sua cor, sua pele. Assim nasceu a rapper, mulher, negra, jovem, Kessidy Kess. Uma resistência feminina de não ser o que os outros determinam para o seu destino: “Todos somos protagonistas da nossa história”. “Nem mulata, nem morena, nem mestiça, negra, negra, negra, NEGRA”.

Coletivo "Mujeres Creando" da Bolívia
Coletivo “Mujeres Creando” da Bolívia

Para encerrar os relatos foi a vez de Camila Bacellar (RJ), atuadora, cientista social e doutoranda na linha de pesquisa Estudos da Performance, Discursos do Corpo e da Imagem no PPGAC/UNIRIO. Colabora no projeto Resistências Feministas na Arte da Vida.

Achei interessante a temática da sua pesquisa, que relaciona a performance ao feminismo, e ela discorre intensamente durante 30 minutos. Recorto aqui as transcrições da gravação que fiz durante o debate. Ela faz esta análise do boom das mulheres no gênero artístico de performance devido ao pouco destaque  dos trabalhos delas na história da arte institucionalizada que possui muito mais homens. (Isso me lembrou um vídeo que mostra as mulheres retratadas em nus por pintores famosos nos museus, enquanto poucas artistas mulheres possuem quadros seus em museus. Tipo assim, mulher só entra se for nua).

“A hierarquização racial e o individualismo propagado pela modernidade e pelo liberalismo influenciaram negativamente várias correntes de pensamento feminista, no nosso contexto latino americano com neoliberalismo muito forte e já entrou em muitos países, o pensamento do feminismo descolonial, feminismo do terceiro mundo, ao lado do feminismo negro, do feminismo interseccional, do feminismo trans, são os que tem colocado os questionamentos e desafios mais importantes. Uma das questões centrais do feminismo é a representação e as políticas de representação, aí entra a arte, não só por representar a realidade, mas a arte cria reflexão sobre a realidade e cria mundos, incide no imaginário e pode ajudar a transformá-los.”

Camila explica que as ficções do poder que sustentam as estruturas raciais e machistas estão no DNA da história do Brasil e estas mudanças podem ocorrer através da arte que gera reflexões, questionamentos, desconfortos. Foi então que ela passou trecho da performance de Michelle Matiuzzi e adentrou no conceito de corpo encruzilhada.

“A Michelle diz: “Meu corpo é meu protesto”. Do que ela está falando? Ela está falando do embranquecimento que a sociedade e sistema vão trabalhar via subjetividade, racismo e opressão baseado na raça ou opressão por ser mulher? Se sim, nesse caso é uma opressão cruzada porque ela é uma mulher negra, e essa é a chave de pensamento do feminismo interseccional, não é só o racismo que violenta a Michelle, mas um racismo articulado com sexismo e com misogenia e o ódio e desprezo por tudo que é feminino. Essa performance nos impele a uma reflexão dos nossos atos cotidianos, como olhamos, respeitamos e entendemos o outro. Muitas das nossas formas de agir estão condicionadas por todo um padrão de beleza”.

“Sobre o corpo encruzilhada acho que esse vídeo ajuda a pensar e entender essa chave de pensamento da teoria feminista interseccional que pauta o intercruzamento dos eixos de diferenciação social, que são gênero, raça, nacionalidade, sexualidade, classe, religiosidade, hierarquização pela diferença de idade, capacitismo, etc, esse feminismo permite a percepção que essas categorias não existem de forma isolada e nem existem a priori, não podemos pensar gênero como categoria pura e nem isolada dos outros elementos, a experiencia de gênero está diretamente relacionada com seu pertencimento de raça, classe, nacionalidade, etc.”

“Corpo encruzilhada é fazer uma autópsia, olhar para si, observação de si. É implicar o corpo no cotidiano com uma consciência eticamente nos enredamentos de mundo que nos dão contorno, quem trabalha com arte e imagem quando atenta pra isso pode fazer uma reflexão crítica sobre, e poderia a ajudar a desabituar os comportamentos racistas, sexistas, etc, e encontrar outros desejos e novas alianças afetivas.”

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Camila chega na parte de sua narrativa que mais me incomoda, falar sobre a arte e o corpo e o poder quando são aliados como instrumento para transformação. Na Bienal de São Paulo em 2014, um coletivo da Bolívia autônomo, criado em 1992 chamado “Mujeres Creando”, composto em La Paz por mulheres indígenas, prostitutas, professoras e costureiras apresentaram uma passeata-performance “Espaço para Abortar“.

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Nesta passeata-performance, as mulheres acompanhavam uma espécie de cortejo com uma obra de arte que era um útero. A cada parada, as mulheres que já abortaram contavam suas histórias. Ao dividir suas experiências, elas confessavam um crime, por isso, o registro de imagens não era permitido. Porém seus relatos foram gravados em áudio e durante três meses de exposição na Bienal, mais de 1 milhão de pessoas puderam ouvir estas histórias reais.

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E nos trouxe a consciência da potência do corpo. Mesmo que seus corpos não estivessem presentes ali, a voz gravada que narra a história própria de cada mulher, faz com que suas vivências sejam presença e não ausência.

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