Um homem por volta dos 30 anos anda em círculos enquanto as mulheres permanecem imóveis sentadas em caixas de papelão. Os passos apressados marcam o tempo. E em uma dessas voltas intermináveis ele surge outro. Um homem com cabelos brancos, com o rosto marcado pela vida, o passo miúdo. Ele caminha e para. As mulheres se levantam e a música acompanha a construção com as caixas de papelão, que delimitam o cenário formando paredes para dividir as três cenas que compõe “O Jardim” da Cia Hiato (SP).

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São três cenas, três atos separados. E quando o quebra-cabeças se une você dimensiona o que é aquele jardim de memórias. A primeira cena apresentada para o lugar em que escolhi é com Aline e sua funcionária Paula. Com humor, Aline e Paula perpassam pelas memórias encerradas no fundo de cada caixa de papelão. A casa do jardim, de sua família, em uma disputa com uma família de poloneses. Elas procuram a escritura mas não encontram.

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E gravam um vídeo para mostrar as relíquias da família. Vestidos, máquina de escrever, álbuns de fotografias, um relógio, discos, um gravador antigo com uma mensagem de quem já não está mais. Aline e Paula remontam memórias que não as pertencem, memórias que lhes foram contadas: a história de amor dos avós, a gravidez da mãe, as festas na casa com as taças chiques. 22 de agosto de 2017. “É tão triste isso das coisas durarem mais que as pessoas”, lamenta Paula enquanto lembram da família de Aline: dona Maria Amélia sua mãe e de sua tia Luciana. “A memória está fora da gente, a memória está nas coisas”.

Enquanto você ri da irreverência das duas com suas selfies e descobertas dos tesouros familiares, frases entrecortadas interferem e complementam sentidos. Gritos que rompem através da parede de papelão. Então, elas recolhem suas coisas e saem.

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Um casal aparece. Thiago e Fernanda usam roupas antigas. Eles discutem, choram, se beijam, se afastam, cantam, riem juntos, dividem suas próprias memórias e indagam sobre o futuro, separados. Ela diz lembrar todos os dias do sangue, do aborto, “que nós fizemos”. Ele diz que não confia mais nela, não sabe quem ela é. “Eu quero levar o macacão amarelo da Aline”. “Júnior”, rebate ele. “Até isso você vai tirar de mim Thiago?”.

“Você vai me bater, de novo?”, ela pergunta. Toda a vida sonhada se dissipa em um segundo. “Só não tivemos o nosso jardim, que agora você vai ter com outra mulher”. 22 de agosto de 1938. É o aniversário dele. Ela bordou seu presente: um suéter marrom com uma flor vermelha. Eles cantam parabéns.

o-jardim-foto-ligia-jardim-88“O tempo é implacável, com o jardim, com a gente, com as coisas”. “Você sem mim…”, ela diz enquanto troca o curativo em sua sobrancelha. “Quando viramos cópias do que éramos?”. Fernanda fala firme mesmo em meio as lágrimas. Ela se entrega, ele recua. E vão embora.

Maria Amélia e Luciana preparam uma festa de aniversário para o pai. Um senhor, com os cabelos brancos, o olhar perdido em algum lugar da memória. Elas falam sobre o passado, sobre os caminhos da vida de cada uma enquanto Maria Amélia faz a barba do pai.

Luciana sente a própria ausência por anos. Maria Amélia sente o peso da sua presença em todos estes anos. Pela primeira vez, a filha que cuida do pai repara na cicatriz da sobrancelha: “Tem coisa que a gente olha a vida inteira mas não enxerga”.

Foto Tati Brandão
Foto Tati Brandão

Lembram da mãe e do quanto ela gostava de passarinhos, sentada no jardim horas a fio olhando para o céu. “Eu gostava tanto dela e foi ele quem sobrou”, diz Maria Amélia. E o pai lá sentado com o olhar vagando pelas próprias lembranças, usando o suéter marrom com a flor vermelha que se recusa a tirar. Elas cantam para ele as mesmas músicas que ele cantou em 1938. Cantam parabéns. 22 de agosto de 1979.

Ele tenta chamar o nome dela mas sua voz some em um fio. Perdido na própria memória, seus olhos estão marejados e marejam os meus. O seu semblante encara a imensidão do vazio, vivendo em um quebra-cabeças, remontando o passado.

O Beijo

Encaixotando memórias. As paredes de caixas de papelão dão lugar ao jardim.

Todas as lembranças, todos os tempos, todas as frases se encontram no jardim.

“As pessoas vão e você fica aqui com as coisas que sobraram”.

“Um grito longo e feliz no jardim”.

“Sabe do que eu vou sentir mais falta? Não é de você, é dos bilhetinhos que você escrevia na sua Remington e deixava pela casa. Quando foi que o som da sua máquina de escrever deixou de ser uma prova de amor?”.

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Em meio ao caos de uma catarse, ele fica lá sentado, contemplando as voltas da própria mente. Entre todas as frases, todos os gritos e risos, ele com o peso dos anos em seu corpo reencontra aquele pedaço de memória e sente ela em seus braços mais uma vez. A luz diminui e o som é silêncio.

As lágrimas lavam o meu rosto e eu penso que estou como os balões brancos que irrompem em momentos da peça: subi, subi, subi até tocar o céu e me esvanecer como as lembranças encerradas em caixas de papelão.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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