Que maneira melhor de deixar de aprender do que se tornando professor? (NAZARIAN, 2006, p. 159.

Quando lemos obras antigas de autores contemporâneos estamos diante de alguns paradoxos de estilo. Quero dizer com isso que nadamos contra a corrente da atualização vocabular, da precisão, da impressão de uma subjetividade relativa quando se estende à escrita um pedaço de si mesmo. Estou em Manaus, pela primeira vez. A cidade de mais de dois milhões de habitantes, incrustada na floresta amazônica e banhada pelas águas misteriosas do Rio Negro é um pedaço de passado, uma amostra de futuro; é Brasil. Participo de um congresso acadêmico do Grupo de Estudos Linguísticos e Literários da Região Norte (GELLNORTE), que acontece na Universidade do Estado do Amazonas, de 28 a 31 de maio de 2019.

Pela própria natureza do encontro, é um espaço de trocas. Logo no primeiro dia apresentei comunicação falando da construção de minha trilogia amazônica: “Matrinchã do Teles Pires” (1998), “Flor do Ingá” (2014) e “Xibio” (2018) e pude assistir a várias comunicações sobre manifestações artísticas manauaras e amazonenses, em sua grande maioria. Durante a vinda pude ler um livro de Santiago Nazarian, “Mastigando Humanos”, a que o autor se refere como um romance psicodélico. De fato o é. Vejo na noite em que fiquei em Belém, por conta de armações da companhia aérea, que Santiago e Paula Fábrio estreiam no segmento infanto-juvenil. A matéria circulou no jornal Estado de São Paulo e informa sobre esse novo momento dos escritores, nova fase, outros segmentos de público.

Ainda não conheço o texto de Paula. De Santiago li “A Morte sem Nome” e agora o “Mastigando Humanos”. A irreverência acompanha a sua escrita. Mas não é um riso fácil, uma ironia simples, sarcasmo burocrático a fim de exercer intelectualmente uma função estética. “Se a culpa os faz trincar os dentes, mastigam um pedaço de pão. E dia após dia engolem minha morte em silêncio, no café da manhã” (NAZARIAN, 2004, p. 150).

Nas duas obras lidas percebo que Santiago experiencia o processo da escrita com reflexões metalinguísticas. Mas não creio que o faça por invencionismo apenas. Há uma pitada de entretenimento que perfez um itinerário processual que encaminha o leitor para uma vivência cultural de onde os desdobramentos linguísticos se afeiçoam da norma culta, embora cultuem a plasticidade dos movimentos da língua que se espaça livremente pelo espaço-tempo da linguagem. E a memória de um corpo que se desloca acompanha o drama existencial de cada personagem em destaque.

A polícia me carrega e os peritos me examinam. Editores me tomam e perguntam qual é o problema. Psicólogos me examinam e não chegam a nenhuma conclusão. Nem o pai. Nem a mãe. Todos agredidos em vão. Eu cuspo no rosto, eu bato na cara, eu corto a garganta, vomito no chão (idem, p. 168).

“Mastigando Humanos”, por sua vez, é um campo para experimentos variados da estética urbana. São Paulo com seu cosmopolitismo avançado é vista metaforicamente pelos canais de um esgoto que corre por sob os pés dos passantes. As personagens dessa alegoria são um jacaré que narra, um jabuti, cobras e demais animais que, peçonhentos ou não, pertencem a um microcosmo subterrâneo. “Mas de vez em quando eu precisava arejar, respirar ar puro, o dióxido de carbono, e colocava minha fuça para fora de algum bueiro, rapidinho, de madrugada” (2006, p. 18).

Reparem que o respirar ar puro para o jacaré, digo, narrador, era trazer para as fossas nasais o dióxido de carbono, não oxigênio, reversão de gases que coloca o réptil em direção oposta à da humanidade. E a galeria vai se apresentando com ilustrações de Marco Túlio Jr que dá ares de realidade às criações fantasmáticas de Nazarian. “Garotos afundando no esgoto, crianças beijando sapos, sapos cheirando cola, mendigos bebendo cerveja. Afinal, todos os prazeres são orais” (idem, p. 46).

Os nomes das personagens são curiosos também. O sapo chama-se Vergueiro. E “As exclusões humanas tornam-se grandes demais” (idem, p. 84). A sátira ao beletrismo perpassa a obra com as personificações sugeridas. O academicismo é retratado como uma gaiola na qual o conhecimento é aprendido, não necessariamente apreendido, pois, repetido incansavelmente, passa a ser reproduzido em série. “Não adiantava pretender ser artista, se minhas metáforas eram compreendidas como dissertação” (idem, p. 146). São muitas as referências ao que afirmei no parágrafo anterior, como o fragmento seguinte:

“… O conhecimento acadêmico afinal é como um telefone sem fio. Um segue o outro e no final nem se sabe mais sobre o que se está falando. Muitas vezes nem a mensagem original faz sentido. Basta criar termos para manter suas grandes bocas ocupadas. E seus cérebros exercitando.” (idem, p. 156).

A construção do estilo em qualquer escritor se faz ao longo do processo. Edifica-se um projeto literário com o passar do tempo. Não se trata de mágica, embora possa parecer fantástica; não falamos de ilusionismo, mas de imaginação e criatividade linguística. Em “A Mulher Barbada”, Nazarian trazia elementos sensoriais para envolver o leitor, enovelá-lo no emaranhado de imagens e sensações. “Tento não prestar atenção, escutar apenas as batidas do meu coração, o ar assobiando lá fora, dentro do meu pulmão. Não me diz nada” (NAZARIAN, 2002, P. 85).

A metalinguagem é elemento constante na escrita de Santiago. Nesta narrativa ficcional não é diferente. “Impressionante como escrever nos dá poder. Vejo meu próprio sorriso de satisfação. Cato-o com as mãos. Viro-me para a janela e não temo mais o vento que entra. (…) oh, Paulo Roberto, que viagem linda que é a literatura” (idem, p. 92).

Minhas próximas leituras são de um único autor. “Amar é crime”, “Nossos Ossos” e “Rasif”, de Marcelino Freire. Deste último acabo de ler o pequeno texto de apresentação que saúda a obra do mestre. Redigido por Santiago Nazarian, não apresenta nada de tão especial, a não ser exaltar a literatura de Marcelino Freire, muitas vezes à sombra de seus projetos de difusão literária, tão grandes quanto. Mas aí já é uma outra viagem…

 

REFERÊNCIAS

NAZARIAN, Santiago. A Morte sem Nome. São Paulo: Planeta, 2004.

Mastigando Humanos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

A Mulher Barbada. In: PARATI PARA MIM. São Paulo: Planeta, 2003.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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