Tenho três casas: a minha terra bielorussa, pátria do meu pai, onde vivi toda a minha vida; a Ucrânia, pátria da minha mãe, onde nasci; e a grande cultura russa, sem a qual não me imagino. Todas elas me são caras. Mas é difícil, na nossa época, falar de amor.

(Svetlana Aleksipevitch)

Quando concluí minha monografia de graduação em Letras trabalhei com um conto de Clarice Lispector que se chama “Um caso para Nelson Rodrigues”. Talvez tenha sido a primeira vez em que percebi de maneira intencional essa relação entre o que se lê e o que se escreve. взять деньги в долг. Aquilo me pareceu curioso e comecei a estudar a questão. Não parei mais.

Acabo de publicar pela Editora da UFMT um ebook, aprovado em edital (IFMT-UFMT), em que trato dessa questão trabalhando com três autoras: Clarice Lispector, Ana Miranda e Letícia Wierzchowski. Quem me lê agora, caso se interesse, pode baixá-lo gratuitamente no site da EdUFMT (Cabeça, Tronco, Membros: ensaios sobre os caminhos da palavra).

Clarice Lispector por Maureen Bisilliat em agosto de 1969. Acervo IMS

Clarice é como se fosse a cabeça do processo de aquisição desse conhecimento, Ana Miranda, como leitora de Clarice, relaciona-se com Lispector e com outros autores (Gregório de Matos, Augusto dos Anjos, Otto Lara Resende, por exemplo). Com Letícia Wierzchowski, leitora de Érico Veríssimo e Tabajara Ruas, fecho o terceto. Com sua obra busco uma conversão desse sul, sobretudo em sua vertente pampeana, ao (genial) romance de Luiz Sérgio Metz “Assim na Terra”.

Recentemente li “A fisiologia da composição”, de Silviano Santiago, que trata da relação da obra literária como hospedeira de um repositório anterior. E o que seria isso? Quando atribuímos o conceito de intertextualidade a um grupamento de referências de outras obras em um texto posterior, fazemos uso desse procedimento – o que não implica necessariamente em atualização de um conceito; lembremos de que para Bakhtin (e ele chama de dialogismo) uma referência dessa natureza independe da visão diacrônica.

Adriana Armony, após ter defendido tese intitulada “Nelson Rodrigues, leitor de Dostoiévski”, leva essa reflexão para o campo da ficção, com toda a liberdade que esse registro propicia. “A fome de Nelson” é dessa ordem. Do imponderável, do contorno das moralidades que envolvem a personagem (contraditória) de Nelson e de suas implicações. Aqui, a personagem é de carne, não construção de mitos; seu texto ilumina a figura humana impregnando-a da linguagem do escritor, desde o prólogo:

O nome Sanatorinho evocava confinamento e intimidade, de modo que os doentes falavam dele com carinho, como de uma noiva. Estendidos na cama, nós simplesmente esperávamos. A morte chegaria de branco, com lírios nas mãos e a promessa casta de um beijo... (p. 12).

Nelson Rodrigues – Imagem do Fundo Correio da Manhã

A palavra “noiva” e a “promessa casta”, a meu ver, dialogam intensamente com o universo rodriguiano. Mas me parece que a materialização do protagonista carecia ainda de uma apresentação mais formal, concreta. E ela veio logo a frente, quando se lê que: “Ia mascando um cigarro no canto da boca e olhava obstinadamente para algum ponto do asfalto, de modo que não percebeu, ou pelo menos assim aparentou, a algazarra de uns rapazes que apontavam para os remendos do seu sapato sem meias”. (p. 18).

“Asfalto” lembra-me de um clássico, materializado pelo cinema na interpretação de Lucélia Santos como Engraçadinha (Asfalto Selvagem). A maneira como se nos é apresentada a figura de Alice, que ostentava certo interesse pelo falastrão, e o modo como a desprezava me parece também dialogar com os tipos femininos e suas relações amorosas complicadas na obra de Nélson.

O texto mimetiza esse aspecto pela narração (canhestra eu diria) em que se parece ouvir de seus lábios, por intermédio de um discurso indireto livre: “Tão triste uma esposa prematura! Nelson sentiu uma onda de culpa roendo-lhe os ossos”. (p. 24). E o retrato do Rio de Janeiro, da boemia carioca vai se desenhando. O leitor tem a oportunidade de se enxergar pelos logradouros públicos pelos quais a figura da personagem se desloca.

Uma prostituta rindo apoiada no ombro de um homem de barriga avantajada que fumava um charuto; dois mendigos dando pontapés num cachorro que gania baixinho; uma vela acesa na porta de uma igreja. Vira tudo isso no caminho para casa ou sonhara? Quantas horas vagara pela rua sentindo alguma coisa germinando em sua cabeça… ou seria no seu peito?  (p. 30).

Nelson Rodrigues é considerado um grande frasista. Para uma parte da crítica sua obra é considerada inferior, talvez pela crítica contundente ao (falso) moralismo pequeno-burguês, pelo não engajamento político nos anos de chumbo e por aí afora. “Ele também tentava entender porque sua família tinha sido destruída, perguntava a si mesmo de quem fora a culpa, e procurava cegamente uma sombra de Deus na incompreensível tragédia”. (p. 33).

Sua prosa (“Meu destino é pecar” e “O casamento”), por exemplo, como a dramaturgia (“Vestido de Noiva”), toca em questões centrais da hipocrisia humana, nas instituições sagradas, nos valores de uma sociedade decadente. “Hoje a mulher não deve pensar só em casamento e filhos” (p. 41). Não tenho me apegado a prefácios, posfácios e textos de orelha, mas eventualmente passo os olhos, sempre depois de ler a obra. Com este de Adriana Armony, agi de forma diferente, lendo a orelha antes e algumas vezes depois de ler a obra. Creio que valha a pena reproduzir, a título de fechamento deste texto, algumas das palavras do orelhista:

Adriana Armony

Com fome, literalmente, de leitores (…), Adriana Armony sai do âmbito estritamente universitário, onde defendeu festejada tese sobre a recepção de Dostoiévski por Nelson Rodrigues, para escrever uma obra que desta vez  não é científica, mas é batata. Nelson, Dostoiévski e o Narrador estão dentro uns dos outros como uma boneca russa. (OITICICA, 2005).

 

REFERÊNCIAS

ALEKSIÉVITCH, Svetlana. Vozes de Chernobil. A história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

ARMONY, Adriana. A fome de Nelson. Rio de Janeiro: Record, 2005.

OITICICA, Ricardo. As três fomes. In: A fome de Nelson. Rio de Janeiro: Record, 2005.

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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