Cada um possui uma maneira de sentir e entender o mundo à sua volta. Essa maneira é composta por referências e construções históricas, sociais, culturais, ambientais. Uma rede complexa que interliga acontecimentos aparentemente distantes, mas que estão correlacionados e se influenciam diretamente. Essa percepção de ser e estar é individual, mas também é coletiva. É subjetiva, mas também é objetiva. Esse paradoxo ambulante entre aquilo que é meu e o que é do outro. Como saber onde termina o eu para começar o outro? Essa perspectiva colonizada e colonizadora, que povoa a nossa consciência, desafia o olhar e nos convoca à uma reflexão crítica e de desconstrução. Não é um caminho fácil de se percorrer, afinal, são centenas de anos de massificação e opressão. Mas, as vozes se levantam e se fazem ouvir. É o caso da guarani, ativista no movimento indígena, sapatão, não monogâmica, Geni Núñez, que administra a página @genipapos no Instagram, e prolifera na rede social posts que desconstroem a lógica imposta pelo colonialismo em suas diversas vertentes. Mestre em Psicologia e Doutoranda em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, Geni pesquisa colonialidades e topou trocar uma ideia com o Cidadã(o) Cultura. Confira a entrevista na íntegra:

- Através das suas redes sociais, você chama à reflexão sobre temas 
urgentes como colonialismo, racismo, lgbtfobia, religião, entre outros, 
mas com uma perspectiva que convida à desconstrução de muitos 
comportamentos e ideias culturalmente enraizados na nossa sociedade. 
Como você percebe o efeito de falar sobre estes temas nas redes sociais?
Geni Núñez

Eu fico muito feliz quando as pessoas comentam que aprenderam algo novo, ou que repensaram alguma postura, é bem gratificante. No entanto, meu objetivo central não é de convencer ou dissuadir as pessoas (aqui falo especialmente daquelas que ocupam posições de poder). O que me motiva é contribuir, somar no fortalecimento do meu povo e das comunidades que participo. A imposição colonial do que é o amor, do que é saúde, do que é progresso, etc. nos machuca e penso que falar sobre isso pode ajudar a curar algumas das feridas que o colonialismo nos trouxe e nos traz, é preciso nomeá-las. Inclusive quando falo sobre violências busco expor muito mais a parte hegemônica dessas relações do que as subalternas, porque penso que esta pode ser uma forma de reparação emocional também.

- Ainda hoje o pensamento colonialista impera nas relações sociais, quais 
são os efeitos mais imediatos e nocivos dessa lógica colonialista que 
norteia a nossa sociedade?

Pergunta de vasta resposta! Risos. Temos dito que a colonização não acabou. A começar da invasão do nosso território e da escravização. Ela não acabou não só porque não houve qualquer reparação real das violências feitas como também pelo fato delas se atualizarem, recrudescerem a cada dia. A imposição da agenda colonial em todos os âmbitos continua se materializando através da violência de um Estado e sua sociedade genocidas e etnocidas.

- Em suas postagens, você aborda a questão do etnocídio indígena. A que 
você atribui essa invisibilização dos povos indígenas e como corrigir 
essas distorções históricas?

Muitos/as parentes/as, como Lais Maxacali, grande amiga e referência nesse debate, temos pontuado que há duas grandes formas de extermínio de nós povos indígenas. Uma é pelo genocídio, que produz nossa morte literal (pelos assassinatos, pela falta de acesso à saúde, aos territórios, etc.) e a outra é pelo etnocídio, que produz nosso extermínio simbólico. Ambos estão conectados, mas não são a mesma coisa. É parte de um projeto do Estado desde a invasão até os dias de hoje em dizer que não existimos mais. O Estado diz que pra ser “índio de verdade” tem que morar em terra aldeada, mas ele nos roubou e rouba todos os dias nossas terras; diz que quem não fala a língua indígena não é mais “índio”, mas criminalizou e demonizou/demoniza as linguagens que exige; diz que todo “índio” que não é “puro” não é mais indígena, mas não menciona que a miscigenação foi um projeto seu, às custas do estupro de mulheres indígenas; diz que só temos uma única “cara de índio”, ignorando nossa imensa diversidade fenotípica e por aí segue. Não só o Estado, mas a sociedade não indígena também pactua com esse projeto, autorizando-se a avaliar quem é indígena ou não, como se nossos corpos fossem objetos de um especialista que sabe mais do que nós sobre nós mesmos. Assim como uma pessoa branca ou negra não deixa de ser branca por ter mestiçagem, nós também não.  Uma forma de reduzir os danos dessas violências é que pessoas não indígenas parem de se autorizar a avaliar nossos corpos, nossas vidas, a julgar como vivemos, e etc. Que respeitem a autonomia dos povos indígenas sobre nossos territórios, seja o território terra, seja o território corpo.

Palmas (TO) – Indígenas de diversas etnias interrompem as competições dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas em protesto contra a PEC 215 (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
- A relação entre terra e povos indígenas remete à ancestralidade, e foge 
da lógica da propriedade privada instaurada pelo capitalismo que trata a 
terra como produto. A demarcação dos territórios indígenas é disputada 
pelo Legislativo e Executivo, devido aos interesses de explorar 
economicamente essas terras. Você acredita que os povos indígenas terão 
autonomia em suas terras no atual modelo econômico em que vivemos? 
É possível garantir aos povos indígenas o direito à terra em um país que 
caminha cada vez mais para o liberalismo econômico?

A pauta da demarcação das terras é nossa pauta central justamente porque ela é basilar. Nós não queremos achar quem exerça “bem” o poder sobre nós, nós queremos simplesmente que nenhum juruá o tenha. Não é um pedido, é uma exigência termos a autonomia de viver nossos modos de vida e pra isso o território é fundamental. Justamente por sermos o oposto da lógica capitalista, extrativista, racista e especista que temos sido alvo prioritário dos ataques deste governo, mas não só deste, desde o momento da invasão o ataque nunca nos deu trégua. Mas somos povos de luta, o governo Bolsonaro não inaugurou a violência contra nós, sobreviveremos a ele. Aqui é nossa casa, é nosso corpo, aqui sempre estivemos e aqui continuaremos.

Mascara usada para o ritual Moyngo.
Xingu Aldeia Moygu povo Ikpeng – Fotos gentilmente cedidas para esta reportagem pelo fotógrafo José Medeiros – Projeto Já Fui Floresta
- “Ser anticolonial é ser antiespecista”. Nesse texto você discorre sobre 
a hierarquia entre humano-animal e que a partir daí, cria-se outras formas 
de hierarquia entre os próprios seres humanos. Você poderia elaborar mais 
a respeito dessa afirmação?

A bússola colonial, que é como chamo a Bíblia, teve como preceitos a dominação do homem aos demais seres. Logo em Gênesis, Deus dá o mundo “de presente” pra Adão, pra que ele o domine. Dominação que abarcou Eva, as plantas, os mares, rios, enfim, todos os demais seres. Não é nada diferente do que o capitalismo, racismo, machismo fazem hoje: utilizam os seres não humanos como recursos materiais e seres humanos tidos como menos humanos (mulheres, pessoas racializadas) como igualmente objetos de serventia para o Homem. A ideia de que existe uma hierarquia moral entre os seres e não uma relação de mútua diferença norteia boa parte da racionalidade das violências. Como oprimir sem culpa? Essa é uma questão que grandes filósofos já se debruçaram, mas basicamente, a resposta é: tornando menos humano.  E isso coloca em alguma semelhança todos os grupos subalternos. A meu ver, nós indígenas somos anticoloniais também porque somos veementemente contra o modo como existências não humanas são tratadas na colonialidade. Temos um respeito profundo pelos rios, pelas matas, pelos demais animais, por nós mesmos. Não é vergonha ou ofensa ser mais um dentre os tantos seres que aqui existem. A megalomaníaca colonial de ser o centro do mundo permanece ainda de muitas formas, uma delas é nessa tentativa de tomar como verdade a ficção de que o humano (cis branco hétero rico) é superior aos demais seres.

- Outro tema recorrente nos seus textos é sobre feminismo, contudo, 
colocando em pauta a questão racial como fundamental para superar 
desigualdades. Como esses movimentos podem trabalhar juntos em busca de 
um mundo com mais justiça social?

Eu penso que basicamente todo movimento, teoria, etc. protagonizado por pessoas não indígenas tende a nos trazer uma contribuição limitada (pra não dizer outra coisa). Por exemplo, eu sou psicóloga e sei que historicamente a psicologia esteve longe de ter uma postura massa em relação a nós (na verdade em relação a muita coisa, rs).  Não só a psicologia, como todas as outras áreas de saber ditas oficiais. Eu também tenho muita simpatia pelo anarquismo e sei que ele tem diversas limitações, para mim, por ser uma teoria de origem europeia, etc. Ao mesmo tempo, assinar embaixo de uma suposta pureza epistêmica desses movimentos e teorizações é silenciar, inadvertidamente, o roubo conceitual, teórico-prático que os permeou/permeia. É meio nesse sentido que me digo psicóloga, feminista e anarquista, tendo em vista as limitações desses movimentos, mas utilizando-os criticamente. É por isso que toda vez que falo sobre violências de gênero falo também sobre violências de raça, porque a criação da diferença hierárquica de gênero, raça e classe da forma como se constituíram, advêm do marco colonial.  Ressalto que este posicionamento meu é bastante pessoal, não pretendo que represente ou fale pelo coletivo de mulheres indígenas. Aliás, nada do que falei aqui pretende resumir ou condensar a multiplicidade do nosso pensamento.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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