Johnny Marcus

Entre os anos de 1915 e 1916 Sigmund Freud escreveu, a pedido da Sociedade Goethe de Berlim, o ensaio “Sobre a Transitoriedade”, no qual narrava um debate sobre a transitoriedade das coisas travado entre ele, “um amigo taciturno e de um poeta jovem, mas já famoso”.

Entre outras ideias, o médico austríaco sustenta que a efemeridade das coisas de forma alguma implica numa perda de seu valor intrínseco. “Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso nos parece menos bela”.

O pai da psicanálise argumenta que o apego às coisas e, dessa forma, o comprometimento de sua fruição, vem de uma revolta na mente humana contra o luto. É como se sofrêssemos por antecipação ante a possibilidade de perda daquilo que amamos.

O referido debate ocorreu pouco antes da Primeira Guerra Mundial e por causa desse conflito, Freud explica, o mundo do poeta viu-se repentinamente subtraído de suas belezas. Belezas tanto da natureza quanto do mundo das artes. O sentimento de perda proporcionado pela guerra, contudo, não se limitou ao poeta nem às coisas palpáveis.

“(…) Destroçou nosso orgulho pelas realizações de nossa civilização, nossa admiração por numerosos filósofos e artistas, e nossas esperanças quanto a um triunfo final sobre as divergências entre as nações e as raças. Maculou a elevada imparcialidade da nossa ciência, revelou nossos instintos em toda a sua nudez e soltou de dentro de nós os maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre, por séculos de ininterrupta educação pelas mais nobres mentes”.

“Sobre a Transitoriedade” é um texto longo que propicia muitas discussões oportunas a este momento histórico que vivemos. Por ora, quero me ater aos “maus espíritos que julgávamos terem sido domados para sempre”.

A onda fascista que tem emergido no Brasil desde o início da década de 2010 é, em grande parte, para nós brasileiros, assim como foi a Primeira Guerra Mundial do texto freudiano, a responsável pelo reaparecimento dos chamados maus espíritos.

No período anterior confesso que pensei em escrever “ressurreição” ao invés de “reaparecimento”, mas as evidências que temos mostram que esses “maus espíritos” nunca foram de fato exorcizados.

Entendendo corretamente a metáfora para “maus espíritos”, assistimos perplexos e incrédulos toda sorte de vitupérios lançados contra negros, mulheres, índios, pobres e população LGBTQ+. E ainda por cima incentivados e comemorados pelo presidente da República. O resultado disso tem estado estampado nas primeiras páginas dos jornais.

O ensaio de Freud é profético: “Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que nos possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras de nossos poetas e pensadores”.

Quando e como perdemos a capacidade de aprender e evoluir com a literatura, música, artes plásticas? Como pudemos chegar a um nível tão baixo?

Os versos shakespearianos no soneto 66 expressam com eloquência a dor deste momento:

Farto de tudo, clamo a paz da morte
Ao ver quem de valor penar em vida
E os mais inúteis com riqueza e sorte
E a fé mais pura triste ao ser traída

E altas honras a quem vale nada
E a virtude virginal prostituída
E a plena perfeição caluniada
E a força, vacilante, enfraquecida

E o déspota calar a voz da arte
E o néscio, feito um sábio, decidindo
E o todo, simples, tido como parte
E o bom a mau patrão servindo

Farto de tudo, penso, parto sem dor
Mas, se partir, deixo só o meu amor

Johnny Marcus é natural de Cuiabá, tem 50 anos de idade e é jornalista 
formado pela Universidade Federal de Mato Grosso. Foi professor de inglês 
e interpretação de texto em língua portuguesa durante 25 anos nas 
principais escolas particulares de Cuiabá. Atuou como repórter nos jornais 
Correio de Mato Grosso, Circuito Mato Grosso, a Gazeta e na revista RDM. 
Como radialista trabalhou nas rádios Clube FM, Cuiabana FM, 
Centro América FM, Regional FM e foi o locutor oficial da Copa do Mundo 
da FIFA 2014 na Arena Pantanal.

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