Reconhecido mundialmente por seus filmes violentos e sexuais, o diretor holandês Paul Verhoeven fizera sua fama no início dos anos noventa com filmes como Robocop (1987), Vingador do futuro (1990)Instinto Selvagem (1992) e arrebanhara uma série de prêmios ao longo de sua carreira. Seu trabalho mais criticado, Showgirls (1995) é nas palavras do próprio diretor seu mais “Perfeito e elegante trabalho até hoje”, e apesar das portas que se fecharam para o diretor após o fracasso de bilheteria do filme, seu orgulho pela obra é sempre ressaltado em suas entrevistas.

Preocupado com a naturalização da nudez e do sexo no cinema, Verhoeven optara sempre por trabalhos que de alguma forma cooperassem com a sensualidade de suas imagens. Seu primeiro filme – premiado o melhor filme holandês do século – Louca Paixão (1985) acompanha a relação ardente de um artista plástico e sua amante burguesa. Nas energéticas cenas de sexo, expressava também a necessidade de ir além do plástico, e de forma violenta despejava desconfortáveis imagens de intimidade e desejo.

Alegando sempre imitar a vida e nunca influenciá-la, Verhoeven pintava em seus filmes a Holanda de seus olhos, explícita. Ao mudar-se para os Estados Unidos em busca de novos horizontes, descobriu uma sociedade muito mais enraizada em tabus do que seu país natal. Apesar do grande capital e da suposta liberdade de produção que os Estados Unidos ostentava graças à sua geração revolucionária setentista, o país enfrentava no fim dos anos oitenta um certo pudor e aversão aos filmes intimistas de personagem famosos uma década atrás.

Descobrindo na ficção científica a liberdade criativa para tecer suas críticas à sociedade americana, Robocop usava uma Detroit futurista para evocar os males da política armamentista americana. Em Vingador do Futuro, dera vida à um universo colorido e perverso. Situado em Marte num futuro dístópico, novas realidades são vendidas como entretenimento. A fuga e o escapismo do entretenimento americano elevados à última potência se escondem nas vestes de filme de ação sci-fi com Arnold Schwarznegger distribuindo tiros e mudando de identidade em efeitos práticos premiados que resistem até hoje.

Se aproveitando da liberdade proporcionada pelo sucesso de bilheteria de seus filmes anteriores, Verhoeven sentia-se em 92 preparado para fazer um filme mais realista. Em Instinto Selvagem, o diretor quebrou as barreiras do gênero do suspense e adicionou sensualidade ao leque de possíveis armas no mundo violento do crime. Sharon Stone em seu mais icônico personagem, se utiliza da sexualidade que transborda de sua silhueta para matar homens, refens de sua própria ignorância e machismo. O filme, que passou por inúmeros cortes em sua versão americana para atender aos padrões de distribuicão do país, era inovador em seu sexo explícito e a glamourização de algo que era tratado como extremo tabu no cinema mainstream americano.  Apesar da polêmica, as críticas positivas fizeram de Instinto Selvagem um sucesso. Sua montagem e fotografia eram verdadeiras realizações e as atuações competentes selavam um pacote muito satisfatório.  A história de crime e mistério era instigante e o fator sensual tornava o filme único.

Com carta branca em Hollywood, e agora reconhecido pelo sexo e violência extremamente gráficos,  o diretor construiria sua maior e melhor crítica ao sonho americano. Distorcendo a jornada do herói e o próprio glamour do sexo que criaria para seus filmes, Showgirls era uma visão decadente e cruel do mundo do showbusiness e de Hollywood em si.

Escrito pelo mesmo roteirista de Instinto Selvagem, Showgirls seguia Mino Malone em sua jornada para tornar-se uma dançarina em Vegas. De Stripper à corista de casino, Mino tem uma personalidade negativa e extremamente fútil. Apesar de ser uma ótima dançarina, a protagonista está longe de ser perfeita e seu caráter amoral casa com perfeição com a Vegas criada pelo diretor.

A fotografia estonteante envolve seus personagens numa eterna aura de sedução, seus corpos brilham nos neóns dos letreiros, no brilho das lantejoulas e na luz dos holofotes. Verhoeven transforma as strippers em celebridades de um mundo podre onde todos os homens são inescrupulosos e se utilizam das mulheres e seus corpos para seus objetivos.  Ostentando seios e cenas de tensão sexual intensa, o diretor vulgariza o ato para pontuar como os jogos do mundo de Hollywood sujam um ato naturalmente belo. Tudo é excessivo e vazio em Hollywood e a mulher é só mais um commodity.

Afirmando que atuação nada mais é que pura prostituição e venda do corpo e que o produtor de entretenimento não passa de um cafetão, o filme levanta questões sobre ética e moral no mundo da exposição do corpo e faz isso de maneira tão brutal que chega a ser desconfortante.

Lançado numa sociedade que repudia a realidade para viver “o sonho”, o filme fora brutalmente criticado e afundara nos cinemas em seu lançamento. Custando cerca de 40 milhões de dólares e arrecadando apenas 38 milhões nas bilheterias, o filme arruinou a carreira de sua protagonista e obrigou Paul Verhoeven a retornar à ficção científica para manter-se no mercado.  Com Tropas Estelares (1997) e O Homem Invisível (2000) – ambos mal recebidos pelo público americano – onde criticou a visão militarista americana e no último a invisibilidade de um homem como libertação dos valores morais da sociedade,  o diretor encerrou sua carreira na América e retornou para a Holanda, onde seus  filmes recentes tem sido muito bem recebidos pela crítica e o público.

Apesar do fracasso de bilheteria de Showgirls, o filme fizera grande sucesso nas locadoras e arrecadou 100 milhões só em locações, se tornando o maior sucesso em locações do estúdio,  e o maior sucesso de um filme +18 da história do cinema. Ainda sim muito criticado por sua atuação excessiva e imagens de sexo vulgar e texto de baixo calão, o filme é pouco comentado e tornou-se um clássico cult vinte anos depois.

Cruel em sua desestruturação de Hollywood, e direto ao representar os homens de seu universo como inescrupulosos traficantes de carne e estrupradores, o diretor não mediu papas na língua para criar um leque enorme de personagens detestáveis. Molly, a independente e decidida costureira que vive  às margens da promiscuidade, tem sua inocência violada como se representasse a noção de que ninguém está a salvo no mundo do showbiz.

Os numeros de dança, coreografados para representar momentos chave na trama, expressam em seus movimentos as emoções da protagonista. Sua montagem é tão violenta quanto suas cenas e os movimentos da câmera conversam com o movimento dos personagens, gerindo um ritmo de cena invejável conquistado por poucos diretores.

Mal interpretado na época pela crítica e refem de uma noção equivocada sobre o filme, poucas são as pessoas que dão a devida atenção para talvez o melhor trabalho de Verhoeven. Acostumados a avaliar seus filmes junto ao mercado americano, esquecem que são eles frutos de um olhar estrangeiro sobre sua socidade.  Verhoeven sempre fora direto em sua percepção de mundo e seus filmes são apenas uma extensão de sua crítica ao país da liberdade.

Vinte e um anos após seu lançamento, Showgirls resiste hoje muito mais contundente que nos anos noventa. Em plena revolução feminina, onde as mulheres buscam uma resignificação de seu papel em diversas camadas da sociedade, um filme que expõe de maneira escrachada  a objetificação do corpo e da sensualidade da mulher não poderia ser mais necessário.  O fato dele hoje se fazer tão atual quanto vinte anos atrás comprova o quão verdadeira é a qualidade e excelência de sua crítica.

Por sua crítica não só ao sonho americano mas ao universo do espetáculo em si, Verhoeven atesta não só sua qualidade como diretor mas como artista, crítico e necessário para a cultura de sua geração. Seu trabalho nos insere no cinema e ao mesmo tempo nos faz consciente da imitação da vida, da existência do sonho. Para vivermos o sonho precisamos estar dormindo, e Verhoeven nos convida a despertar.

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