Por Camila Cecílio

sê inteira como o som que começa, ressoa e silencia o vazio. no entanto, cá estou, pelas partes — não fui ainda terminada. me ponho no mundo como ser mutante, ser em movimento. sê inteira como a água do rio que passa e escorre pelos olhos em busca de seu trajeto, seu trejeito, na pele. no entanto, como ser inteira quando o ser se apresenta em partículas? é a pergunta que nos faço, pois ouso me sentir em tudo que há. estou no frio congelante da cidade cinza. estou na postura concreta do asfalto. estou no afago nos pelos do cachorro andarilho. estou nas folhas secas da árvore que resiste. estou no corpo morto do animal repousado sob a luz do dia. estou na bituca do cigarro com a marca de batom. estou no olhar cansado da mulher com duas sacolas no metrô. estou no sorriso por debaixo da máscara antivírus. estou na fumaça do milho quente na porta da rodoviária. estou no medo, na dúvida, no canto, na dor. almoço com a dor, tiro a dor pra dançar e logo perco a vontade de dar o próximo passo que me trouxe, outrora, a esperança de ser inteira. dançar me faz ainda mais despedaçada, pois é dançando que me espalho mais pelas coisas do mundo. danço e paro. paro e recomeço depois. e o depois sempre pode ser agora. por que há ainda uma esperança de eu ser toda eu, se meu eu é feito do todo? o todo é deus? o todo é divino? o todo é você? me misturo a sete bilhões de rostos. o que aviva a vida? caminhões passam pela rodovia e levam embora os meus pensamentos e um pouco do que fui. embora pra onde eu não saiba e não-saber é por onde as belezas forasteiras viajam. vez e outra aparecem. é matéria da complexidade mais absurda tentar compreender os movimentos do mundo quando muitos existem somente para a contemplação fugidia; aquele instante menor em que a alegria é quase palpável por causa e consequência da percepção de que existe o todo. o todo é uma entidade, uma ode ao efêmero. se você viu, ô sorte. nesse momento miúdo, fecho os olhos, me quebro, me lanço, me espalho. sê inteira, sê pedaços de si mesma, grito e rezo. no fim, ou no começo, ser inteira talvez seja mesmo ser pela metade.

Camila Cecílio é jornalista e escrevedora das coisas de dentro da gente. Cuiabana, vive entre São Paulo e o interior do mato, onde encontra o fôlego e força necessários para continuar em busca de mistérios do viver.

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