Novamente não pude ir à FLIP. Mas me vi em cada conhecido que por lá esteve lançando livro, consumindo a literatura, ou apenas passeando pelas ruas de séculos passados. Enquanto participava do Litercultura, em Curitiba, apreciava as postagens de quem foi e me prometi que do ano que vem não passa (vamos ver!).

Uma das coisas que mais me chamou atenção pelas redes sociais foi a felicidade de certa escritora paulista pelo fato de ter emplacado dois livros entre os mais vendidos na festa, ao longo dos dias. Ainda que a venda não seja tão expressiva, do ponto de vista quantitativo, o foi pela qualidade dos leitores que por lá circulam anualmente, uma vez que são todos formadores de opinião.

Essa moça de quem falo anda por aí, destaque de eventos na área da filosofia, debates sobre temáticas ligadas ao feminismo e negritude, dentre outros eventos que “bombam” país afora, mesmo diante de uma crise de valores, mais do que apenas financeira que nos imputa certo recolhimento (não intelectual, que fique claro!). E ela tem falado pelo hemisfério norte também, diga-se de passagem.

 

No frio curitibano que variou entre 3 e 18 graus entre os dias 6 e 12 de agosto, consegui fazer algumas leituras, embora houvesse dia em que as mãos quase não conseguiam ficar de fora das cobertas para segurar o livro. E assim li, “O que é lugar de fala” na véspera de voltar para casa, no sábado, 11 de agosto e “Quem tem medo do feminismo negro” no domingo, entre os aeroportos Afonso Pena, de São José dos Pinhais e o Marechal Rondon, em Várzea Grande, ponto de chegada.

Não tenho a pretensão de que este texto seja uma resenha das duas obras, e sim breve comentário acerca de sua importância. Djamila não chama para si um protagonismo imediato, faz um percurso sobre a história do pensamento sobre a cultura negra na boca de homens e mulheres negros que se destacaram em seus países de origem, até virarem verbetes como detentores e detentoras do poder de fala.

Foto Gabo Morales – TRÉMA

Procurei fazer dessa leitura um prolongamento da temática do evento em Curitiba que foi a de lugar de escuta. E a escuta silenciosa do discurso de Djamila falou alto para minhas convicções. Um cochicho pesado de reflexões necessárias para sairmos dessa zona de conforto branca, machista e repleta de expressões racistas que se espraiam pelo cotidiano.

Acredito que muitas pessoas ligadas a movimentos sociais, em discussões nas redes sociais, já devem ter ouvido a seguinte frase “fique quieto, esse não é seu lugar de fala”, ou já deve ter lido textos criticando a teoria sem base alguma com o único intuito de criar polêmica vazia. Não se trata aqui de diminuir a militância feita no mundo virtual, ao contrário, mas de ilustrar o quanto, muitas vezes, há um esvaziamento de conceitos importantes por conta dessa urgência que as redes geram. Ou porque grupos que sempre estiveram no poder passam a se incomodar com o avanço de discursos de grupos minoritários em termos de direitos. Antes de chegarmos a autoras como Grada Kilomba, Patrícia Hill Collins, Linda Alcoff e Gayatri Spivak, vamos abordar esse conceito por outras perspectivas. Não é a ênfase que pretendemos aqui, mas julgamos importante apresentar aos leitores e às leitoras outras visões para enriquecimento conceitual (RIBEIRO, 2017, p. 56).

O palmilhar de desenvolvimento da obra é didático e se apresenta em linguagem clara, perfeitamente acessível para todo e qualquer cidadão/cidadã interessado em obter informações acerca da conformação humana, deformação conceitual e reformulação premente de uma sociedade autoritária que insiste em tapar com a peneira e sob o manto da democracia racial o que não se pode mais manter debaixo do tapete.

O segundo livro de Djamila que tem conquistado espaço nas prateleiras de livrarias pelo Brasil é uma coletânea de artigos publicados no blog da “Carta Capital” entre 2014 e 2017, “muitos deles reagindo a situações do cotidiano, como os ataques e Maju Coutinho e Serena Willians – a partir dos quais a autora destrincha os conceitos de empoderamento feminino e interseccionalidade – e o aumento da intolerância às religiões de matriz africana”. Nele também há um texto de abertura, intitulado “A Máscara do Silêncio”, fundamental para aprofundamento nos temas.

Nesta obra, a filósofa destaca miudezas do dia-a-dia em que se pescam elementos racistas e preconceituosos em geral na fala de apresentadores de televisão, jornalistas e demais formadores de opinião que desconhecem, ou atuam de caso pensado no sentido de desvalorizar a mulher, de maneira geral, a mulher negra, especificamente, a mulher trans, com maior contundência.

Considero difícil fazer o fichamento de qualquer uma dessas obras. É necessário que os textos sejam lidos, discutidos, repensados para que, cada qual, de seu lugar de fala, possa re-agir direcionando os mínimos gestos para o respeito de quem ordena o pensamento e nos explica a que se veio; em um segundo momento, dirigir seu olhar para o mundo a partir de uma compreensão renovada do lugar social de cada um. Sem a empatia não há mudança.

A felicidade de Djamila é imponderável. Seus livros já vêm sendo adotados em programas de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado, graduação em várias áreas do conhecimento, mas também em escolas públicas e privadas de ensino médio, dada a importância da temática e leveza da construção discursiva. Importante para professores de todos os níveis, independente da cor da pele, da orientação, condição, de preferências sexuais, essas construções históricas que os tradicionais insistem em chamar de conformações biológicas.

 

 

Referências:

O Que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

Quem tem medo do feminismo negro. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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