Enquanto escrevo estas linhas, metade de meu corpo está imerso. Da cintura para baixo sinto um relaxamento muscular me invadindo, ocupando as arestas dos poros lentamente. Estou sentado em um banco de acrílico no entorno de um bar incrustado na piscina de água quente. Sob meu olhar atento, o romance de estreia de Juliana Leite. Rascunho alfarrábios nas costas de documentos da declaração do imposto de renda de 2016; acabo de pegar minha pasta no escritório de contabilidade. Organizo os pensamentos depois de findada a leitura.

Não falo de trama, de avesso, de linhas soltas. Quem o faz é Juliana. Falo de dramas, de preço, de alinhavos de pequenas gotas. Não sinto cheiro de laranjas, mas ouço vozes distantes coladas às paredes brancas, semelhantes ao branco do papel que incorpora corpo e alma, o devir de Magdalena. Vejo dentes dormentes de chapisco, de tanto segurar no ferro coletivo que balança. O tapete se constrói, como uma trama. Olho para as pontas dos pés, o solado engruvinhado pela água. Adivinho rugas sulcando o tecido que segura o peso de meu corpo. O tapete. A trama. Uma cor principal e duas outras, por contraste, ou semelhança. O tapete.

Com a trama nas mãos, ela me explicou, agora eu passo a agulha por dentro, dou um nó bem rente aos fios, não vai abrir, mesmo pisando. Coisa das tias, o bordado, os tapetes, elas me ensinaram tudo. Nunca fez outra coisa? Eu quis saber, e ela aproximou a trama dos meus olhos para que eu visse como se fazia para esconder o nó. Acabamento invisível, era o nome (LEITE, 2019, p. 50).

Rafael Gallo, do “Rebentar”, despertou para o que há de consistente nesta trama. Pôs lá no Rascunho. Não pretendo passar a limpo, dar “spoiler”, fazer resenha. Passo o livro da esquerda para a direita, e vice-versa, por ter às mãos o substrato. Bordo mentalmente meu desenho, construo o mapa do hospital com as paredes seminuas, os corredores assépticos, entre as divisórias que costuram primeiramente a trama. Tomo um café com leite, Juliana me acompanha encadernada. Tenho em mãos o seu construto, imagino seu tear e observo meus pés se enrugando. Vejo ao avesso shakespereano o universo de Borges, em epígrafe. Deixo as tias para trás.

O calor me atinge a cintura, a parte debaixo do corpo, embaixo da água. Quente. As tias me rodeiam. A acompanhante, a louca – talvez mais sábia por entre as brechas. Sinto as mãos de tilápia de Magdalena. Ou seriam com textura suína seus enxertos? Os excertos de palavras costurando a fio, ponto por ponto os enunciados. Vejo fotos, caixas, folhas. A escrita na cozinha, o espaço do coser e do cozer, rentes ao fogo. Tapete de vozes. Polifonia extrema de ruídos.

Você planejava as entradas dos parágrafos, a numeração dos capítulos, cuidando para que as cortinas e as cenas das cortinas, os corpos e as cenas dos corpos, os lábios e os lábios em movimento, para que tudo isso funcionasse. Me lembro de que essa era a tua única preocupação: que funcionasse. Você achou aquilo parecido com fazer tapetes. Tramar e escrever, coisas que se fazem com as mãos (idem, p. 149).

As frases do hospital, a alta, baixa essa planta das mãos que tece, entristece, tessitura da palavra que sangra no vermelho cuspido do tear, baratear, sucatear: “tears for fears”; mãos de mãe, de tia, de mulher. Não sei como teria sido. “Foi desse jeito? / Vamos deixar escrito desse jeito” (idem, p. 165). Os pés quentinhos dentro da água. Piscina quente. Troco de lugar para fugir ao sol. A pele vermelha. Do sol. A poltrona vermelha me lembrando Bachelard. Os tapetes, os capachos, fichários cheios de instruções. “Você sentada na escrivaninha desenhando o primeiro metro de trama. Os cabelos encostam no papel, a mão segura o lápis” (idem, p. 182). Close: zoom!

Mãos e pés, mais que apoio, canais. As larvas escuras comendo a pele morta nos banheiros sujos. Sem pano de chão. “O peixe não apodrece mais” (idem, p. 185). Alfa, beta, gama; conta até três, você, leitor, também salta no dois. É preciso a tesoura para  o corte dessa linha. Os pés, depois de tanto mergulho começam a descascar. Sinto a pele se desgrudando, células mortas. Você e a “Coragem nas mãos”! (idem, p. 230).

Jogar sozinho para dois?

As mãos sabem?

As mãos estão combinadas?

(idem, p. 244).

Penélope dos dias atuais, Juliana Leite é outra moça tecelã, não a de Colassanti, personagem literária; esta, artífice da escrita, dona desse tear de distopias intimistas que se inscrevem no tecido que brota das mãos. Sua estreia traz para a cena literária esse brilho fosco, por não buscar a transcendência. Fosco, por ser de pátina de cor opaca nesse mundo de letras reluzentes, mas de fontes frias. O calor que emana de sua escrita sobe da planta dos pés de onde as larvas não passam, não alcançando as mãos que, herdadas em grande parte das bruxarias de mãe, produzem este antídoto necessário para  o fazer de conta.

Fosco o banheiro em que me ajeito para ir embora. Tomo banho e seco a planta dos pés. Vejo pedaços de pele se esvaindo, cutuco e tiro com as mãos. Não vejo larvas escuras para alimentar sua fome. Saio com os pés do tênis por entre as mãos. Um em cada, ou seriam os dois na mesma? Não me recordo ao certo, meio confuso; assim eu vejo, assim me fio, minhas linhas soltas, me exponho ao avesso, inclusive iniciando a oração com pronome oblíquo, minha trama.

 

REFERÊNCIA

LEITE, Juliana. Entre as mãos. Rio de Janeiro: Record, 2018.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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