Por Túlio Paniago Vilela*

Estirado, horizontal e reto. Duro, frio e pálido. Nem mais nem menos do que se espera de um cadáver. Aliás, neste momento, a não ser pelos algodões e o pó na cara, nada o difere de qualquer outro ser desprovido de vida.

E, ao redor, tais quais abutres, olhares mórbidos sobrevoam e pousam sobre o corpo que jaz neste caixão cuja madeira é tão morta quanto. Ahh o velório! Cerimônia fúnebre de origem medieval cujo propósito era confirmar se o falecido estava mesmo falecido. No caso, se depois de 24 horas não voltasse a respirar, era finalmente enterrado. Estranho, né? Mas o pior é que alguns voltavam mesmo… Entretanto, a julgar pela solidez destes tempos, duvido que alguém alimente esperança na ressurreição deste pedaço de carne. Portanto, à exceção dos familiares mais próximos, o que os demais fazem além de urubuzar?

Diriam – os mais hipócritas – que estão a honrar a memória do defunto. Ora, pois me digam, que honra há em passar horas em pé tomando café com biscoito e olhando entre uma piada e outra para a cara de um morto? Um corpo que, após passar pela tanatopraxia (procedimento que retarda a decomposição), exerce a inglória função de estar ali simplesmente para que outros exerçam a monótona e desgastante função de velá-lo.

E o que seria velar? Uma das definições do dicionário diz que é “conservar-se aceso (ex: uma luz velava)”. Deveras essa definição me convence. Velar é o ato de ser vela.  Este objeto que é consumido pela própria chama. Portanto, os que velam, neste exato momento, se consomem pela chama da existência, o mesmo fogo que outrora consumira este cadáver estirado, horizontal e reto. A chama que nos dá consciência que, independente dos meios, estamos todos condenados ao mesmo fim. Um fim duro, frio e pálido. Talvez seja a vida um longo velar.

Portanto, sejamos sensatos, ninguém espera que o morto volte a respirar, tampouco honram qualquer que seja sua memória; boa ou ruim. Vão a velórios somente pelo café, os biscoitos e principalmente pela tradição. Até porque quem motiva a cerimônia já não está entre eles (a não ser de corpo presente. Será que foi daí que surgiu a expressão?). Enfim, só o velam assim porque a tradição diz pra velar assim. Se dissesse para esquartejar os membros e comê-los crus, o fariam sem pestanejar. E o fariam em honra da memória do falecido.

Então, de repente, quando me via imerso no vazio abissal destes olhares e já quase sem vida quanto o morto, minha atenção foi ressuscitada pelo intrigante contato entre duas senhoras visivelmente emocionadas. Elas cruzaram simultaneamente seus olhares enrugados e marejados. Pelo estranhamento, deduzi que não se conheciam, porém senti o calafrio que ambas sentiram ao se reconhecerem no olhar uma da outra. Neste instante, lágrimas contidas transbordaram as margens dos olhos feito o romper violento de uma represa.

Em momentos assim, de emoção aflorada, costumamos dizer as coisas mais idiotas possíveis. É quando a razão se submete ao sentir. E o sentir, por extrapolar os limites racionais da linguagem, não pode ser expresso em palavras, o que nos leva a dizer bobagens. E foi o que uma das senhoras fez. Sentindo a necessidade de dizer qualquer coisa, mas incapaz de formular coisa qualquer, perguntou sem pensar:

– Você sabe quem morreu?

Aos prantos, a outra senhora respondeu:

– Na nossa idade não importa quem morre, o importante é chorar.

As duas sorriram e morreu o assunto.

*Túlio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros,
e vive em Cuiabá desde 2010.

Comentário

  1. Paia pa caraio… Sob o olhar poético não é bom, sob o olhar filosófico é péssimo e sob o olhar antropólogico é horrível… Boca fechada de defunto não entra mosca… tsc tsc tsc

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