Emildo Coutinho

Menino de Asas. Este foi o primeiro livro lido. De Homero Homem, da série Vaga-lume. Depois vieram outros da mesma coleção.

Antes, ou melhor, no início de tudo, o Menino – não o de asas – mas nosso pequeno herói, colecionava revistas sobre telenovelas. Era o tipo de leitura que a Mãe fazia; desde moça, provavelmente.

Para comprar as tais publicações, o Menino usava dos mais ilícitos meios. A Mãe jamais questionara isso, afinal, também usufruía da leitura. E depois, ele dizia que ganhava do filho da dona da única banca de revistas da minúscula cidade, uma senhora que tinha apenas uma filha, adulta.

Deixou de colecionar as tais revistas quando a Mãe lhe disse que isso era coisa de menina. “Menino lê gibi, né, mãe?” acrescentara a pequena Irmã.

Envergonhado, o Menino passou a ler e colecionar histórias em quadrinhos, até que um dia um disco com a narrativa de Branca de Neve e os Sete Anões caíra em suas mãos. Pedira à Mãe para comprar os outros títulos da coleção. Ela jamais o faria.

Aos onze anos, então, descobrira Menino de Asas. E prosseguia com os mesmos métodos para adquirir novos volumes. Até que um dia resolveu ousar. A Mãe havia comprado um título de Maria José Dupret para a Irmã; a escola pedira, somente por isso; tinha que comprar. Como a professora do Menino não tomava tal iniciativa, ele ousou. Comprou um outro título da mesma autora. Os mesmos personagens, mas uma história tão fascinante quanto a outra.

A Mãe não estava em casa. Quando telefonou por um motivo qualquer, a Irmã disse “O Menino comprou um livro…”. Talvez fosse melhor assim; por telefone. Mas não foi possível encerrar o caso de maneira tão simples.

Quando a Mãe chegou, quis logo saber que livro era aquele. O Menino mostrou e, confuso, tentava explicar. Não, a professora não pediu; mas, não; não é igual ao da Irmã; quer dizer, é igual… Quer dizer, é da mesma autora, mas outro título.

Porém a Mãe insistia em repetir: cê comprou um livro! Menino, cê comprou um livro!! Um livro, Menino, cê comprou!!

Pensou que fosse apanhar; não, talvez ela atirasse algo nele, qualquer coisa que tivesse nas mãos ou ao seu alcance, como de costume. Ou, quem sabe, ela o puxaria pelos cabelos, como de costume. Todavia, não, apenas os gestos dramáticos – motivo do apelido Regina Duarte por parte do Filho caçula – e a frase constante e inconformada: cê comprou um livro!!

Ao ver que a ousadia originou muita tensão e medo, o Menino continuaria a formar sua biblioteca com os mesmos métodos ilícitos de outrora. Cresceu um pouco mais e passara a ler os clássicos brasileiros, embora não compreendesse todos. O que era compensado com os best sellers norte-americanos, de fácil digestão.

Certa vez, estava vindo da livraria com Quincas Borba debaixo do braço. A imagem ameaçadora da Mãe, à porta do comércio familiar, de onde furtara o dinheiro, o fez correr para um terreno baldio e esconder o volume.

Alguém o viu, de uma casa próxima, porém tinha que correr o risco; a Mãe, essa sim, não podia vê-lo com a obra. Embora já não mais fosse cega, pois certa vez, ao se deparar com A Pata da Gazela, questionou “De onde vem dinheiro pra isso?”.

Quando o Menino voltou ao terreno baldio, o livro não estava mais lá.

Como o menino do primeiro livro lido, o Menino criou asas; todavia metafóricas, não físicas.

Aos dezessete anos começou a trabalhar e gastar boa parte de seu salário em livros. Amante das palavras, pensou que cursar Jornalismo seria alimentar esse amor. Viajou e morou em terras distantes. Já inicia seu filho de três anos na arte da leitura. Lê os clássicos da língua inglesa e espanhola no original.

Hoje compra livros sem medo, embora haja sempre uma espécie de culpa em cada aquisição. Será que não seria melhor comprar pão? Alimentar apenas a carne ao invés do espírito?

 

Emildo Coutinho é escritor, jornalista, professor de inglês-português e mestrando em Linguagens e Tecnologia na linha Estéticas, Modernidade e Tecnologia, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

 

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