O livro de Kerouac  jazia aberto sobre a mesa. A penúltima página borrada de gotas de vinho. Espalhados pelo quarto de dormir, folhas de impressos, rabiscos, desenhos, fotografias. As botas pretas, enlameadas, jogadas no canto, junto ao casaco verde de camurça. Uma réstia de luz vazava pelas frestas da janela, anunciando a chegada do dia. Lilia sonolenta abriu os olhos e virou-se para o lado na tentativa de dormir novamente, o que foi em vão. As cenas da noite anterior estavam frescas na sua memória apesar do grande volume de álcool ingerido na véspera.

Um falso frio soprara dos Andes naquela quinta feira de estreia do festival de cinema. Lilia e seus amigos etílicos deixaram a sessão comentando animadamente sobre as performances dos atores, roteiros, direção, fazendo uma longa lista de tudo que gostaram e desgostaram dos filmes exibidos. Imersos em fabulações poéticas, entraram no carro tagarelando loucamente. Vinicius cofiava o cavanhaque enquanto dirigia, fumando um cigarro e recitando versos escabrosos. Antonio, no banco de traz, gaguejava arrumando o seu eterno guarda chuva sobre o banco. Uma garoa fina e fria caia leve como um manto sobre a cidade  iluminada.

Havia tantos bares no caminho que era difícil decidir. Por fim, pararam diante de um boteco simplório, cujo aspecto lembrava uma casa comum. Uma grade rendada, pintada de branco, circundava o pequeno jardim gramado com roseiras floridas. As mesas dispostas displicentemente denunciavam certo desmazelo. Ao entrar, Lilia percebeu uma atmosfera soturna, apesar de aconchegante. Na mesa próxima ao portão da entrada, um grupo de mulheres negras, encarou Lilia com hostilidade. O dono do boteco, visivelmente bêbado, arrastava-se penosamente de mesa em mesa com um copo na mão servindo-se da bebida dos clientes. Era coxo e tinha o rosto redondo e vermelho, os cabelos ruivos e um ar bestial na face.

A um canto, um homem alto, jovem,  solitário, também negro, escorado na parede fumava um cigarro após o outro diante de um copo de cerveja que nunca esvaziava. Estava absolutamente só, imerso em seus próprios pensamentos e durante toda a noite não se moveu do lugar. Vestido de branco, com um chapéu panamá caído sobre o rosto parecia sonhar mergulhado em profunda tristeza. O olhar sombrio, enigmático, deixava à mostra a possível saudade de uma terra distante, de um amor perdido, talvez. O garçom manco, de quando em quando, parava diante dele e servia-se da sua cerveja sem que isso o afetasse.

Na terceira mesa estava um casal bonito, acompanhado por um gay velho, rotundo, vestindo uma camisa floral e uma echarpe rosa choque. Ao levantar-se e dirigir-se ao balcão Lilia notou que ele também era coxo. Mancando, aproximou-se do garçom bêbado e cochichou algo em seu ouvido. Nesse momento a mulher negra, alta, magra, com grandes seios voluptuosos, quadris estreitos e pernas longas, levantou-se alterada, e falando num dialeto estranho, avançou sobre o parceiro puxando-lhe a camisa de cetim brilhante, meio aberta, que deixava a mostra o peito forte. Ele segurou-a pelo braço e beijou-a a força sob o olhar constrangido dos presentes. A discussão seguiu acalorada e o velho gay foi sentar-se junto ás outras mulheres. Lilia notou o clima tenso do ambiente carregado. Vinicius e Antonio, entretidos com seus poemas e lorotas, nada perceberam.

-Vamos embora, disse Lilia, está ficando tarde! emendou. Na mesa ao lado o rapaz de branco permanecia calado, ausente, diante do seu copo de cerveja cheio até a borda. As mulheres da mesa em frente continuavam encarando o pequeno grupo, cheias de hostilidade. O casal, às turras, enredava-se entre tapas e beijos. A bicha velha, nessa hora, estava abraçada ao garçom ruivo, ambos mancos, desolados, na imensa solidão da desventura das suas bebedeiras patéticas. A echarpe rosa caíra no chão de ladrilhos amarelos, pisoteada pelos pés dos amantes em confronto. O nome do bar piscava bruxuleante, no luminoso em frente: “Que coisa é essa?”

Lilia e seus amigos retiraram-se de lá por volta das quatro da manhã. A garoa se intensificara e caia grossa, dificultando a visão através dos vidros embaçados. Lilia chegou a sua casa exausta, arrancou as botas jogando-as no canto da parede, e dormiu sonhando com cenas americanas de bares enfumaçados cheirando a uísque e cigarro barato. Chegou a ouvir nitidamente o som de uma banda de blues a chorar ilusões desfeitas e acordou pensando em voltar àquele misterioso boteco  e rever aquelas pessoas estranhas, emblemáticas.

Na noite seguinte, retornaram ao bar, mas foi em vão. Estranhamente este estava fechado. No jardim, a grama amarelada e as rosas ressequidas, desfolhadas, evidenciavam o abandono. O luminoso pendia dependurado precariamente por um cabo gasto e puído. As grades rendadas do jardim apresentavam-se descascadas pela ferrugem corrosiva, nada fazia lembrar a noite anterior, com aqueles personagens caricatos, abduzidos pelos vapores do álcool e das paixões. Teria sido um sonho? Curiosa, Lilia perguntou à moça da sorveteria próxima. Indagada, ela esclareceu que o bar estava fechado há muito tempo, cerca de sete ou oito anos, desde a  fatídica noite na qual uma mulher enlouquecida assassinou o amante e um casal gay a facadas, e em seguida se matou. Depois do sinistro acontecimento o bar foi fechado. Mas, dizem, que por lá ainda vagam, em chuvosas madrugadas frias, os fantasmas protagonistas daquela tragédia de amor.

 

 

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