Por Amauri Lobo*

Foi em uma manhã de clima agradável de uma quinta-feira de um março chuvoso (2018), algo raro em Cuiabá (MT), que tive esta conversa sincera e reveladora com Vinicius dos Santos. Entre um café quente e um pão de queijo, nosso papo fluiu pelos meandros desta personalidade, ao mesmo tempo, simples e complexa. Vinicius emana arte, mas são as profundidades de sua fala que dão sentido a tudo. Com uma obra de expressão corporal confessional e impactante no circuito – P.A.C.K.A.G.E FIM O – e muitos planos na cabeça, ele nos abre algumas páginas de seu livro interior.

  1. Quem é Vinicius dos Santos?

É uma pessoa que gosta muito de perceber o que pode trazer desdobramento artístico. Eu gosto de música, de fotografia, de tudo que vai me trazendo inspiração que possa me trazer a possibilidade de ver o movimento, porque eu preciso ver para poder fazer. E se sou muito curioso, me calo muito também. Falo do Vinicius dos Santos artista, porque eu me considero muito cru ainda e sei que preciso aprender muito ainda e que sempre aprenderei com o próximo. Então, o que eu puder estar observando e absorvendo daquele outro sujeito que está comigo é bem interessante. Aprecio muito este estudo superaprofundado (sic) das coisas. Gosto de ir, de sentir cheiro, de tocar, estar em um lugar. É muito significativo pra mim estar em algum lugar, pois os lugares simbólicos mexem muito comigo e acionam muito o meu lado criativo. Eu nunca tenho um movimento do tipo “é isso!”. Eu vou vendo imagens e vendo como é que eu ponho palavras nestas imagens.

  1. Quem será Vinicius dos Santos?

Eu quero muito ter a liberdade da pesquisa. Ser este instrumento que consegue agregar várias forças conjuntas pro fim, que é o pensar, que é o tocar o nosso próximo. Como o meu próximo pode me ver muito mais como ele? Porque a gente é construído em uma sociedade individualista, então quando alguém me vê ele também vê os outros, porque eu sou muitos. É muito disso, de ter essa flexibilidade para a ação. Poder pensar e pensar sem receios, por exemplo, financeiros. Eu espero poder ter esta amplitude de poder dizer “vamos produzir tal coisa” e fazer sem ranger de dentes.

  1. O que Vinicius dos Santos faz?

Eu gosto de me contaminar, gosto de perceber como o corpo do outro se move e pensar aquilo no meu corpo. Eu gosto dessa fricção que há no corpo e como torna-la fluida. Estas coisas mexem muito comigo e eu gosto dessa profundidade! Já falei nisso, mas é porque eu acho que estas coisas vão trazer muito subsídio à arte que eu quero fazer. Que seja esta arte extra-sensorial, por vários fatores corporais, em que a pessoa possa acompanhar parte da obra que eu componho, porque nada que eu componho se fecha em uma única célula. Não existe isso. Eu gosto muito da metástase, desta coisa incontrolável que vai se desdobrando. É muito legal conseguir aproximar e conquistar o olhar, o olfato, a sensação da pele, o tato, o paladar… De indivíduos que não se comunicam no sentido de lugares diferentes, culturas diferentes, os olhares todos, subjetivos e diferentes que temos.

  1. O que Vinicius dos Santos não faz?

Eu não gosto de ser promíscuo, não gosto de me corromper. A corrupção humana fede de longe e eu não gosto destas coisas. Gosto do branco no preto, do “até aqui eu consigo e daqui pra frente eu não consigo mais”. Não sei… Quero aprender… Não consigo aprender… Por que não consigo aprender? Estas coisas me põe na situação de não ser detentor de nada. Posso até ser canal de alguma coisa, mas deter alguma coisa eu acho isso muito absolutista. Como eu já sou absolutista por natureza (risos) é melhor afastar estas coisas, pois a vaidade põe a gente no automatismo. A promiscuidade de não ser fiel e realista consigo mesmo é que traz a vaidade, que traz o automatismo e no automatismo a gente perde os detalhes.

  1. Quais são os highlights de Vinicius dos Santos?

Precisão, ousadia e enfrentamento (risos).

 [Vinicius costuma usar alguns jargões pessoais. Aqui fazemos uma pequena incursão através deles]

  1. DEFINA “O corpo é político e a fala é política”.

Eu acredito que o corpo seja mais político que a fala. A fala, dependendo dos verbos e dos predicados que você use, ela se limita. Agora, o corpo tem universalidades. Isso significa que ele atinge em cheio o outro. Mas, esta política, tanto em fala quanto em corpo, de acordo com aquilo que eu trabalho no momento, eu acho que precisa ser algo muito coeso… Porque eu tenho vícios como qualquer outra pessoa e neste despertar de consciência – principalmente neste meu primeiro trabalho que desenvolvo sozinho – precisa haver esta unicidade entre a voz política e o corpo político.

  1. DEFINA “Sou musicista com o corpo”.

Ah! Isso é fácil (risos)… Sou, porque meu pai queria que eu fosse musicista. Ele sempre gostou muito de instrumentos e, aos 16 anos, foi eleito o maior baixista de Recife (PE). Mas, ele nunca pode mergulhar mesmo nisso. Meu avô, Seo Tobias, era poeta, músico, artista plástico e boêmio e morreu super jovem. Não chegou a conhecer meu pai. E meu pai acabou me ensinando a decompor a música no sentido de observar o que está sendo proposto, não só de rítmica, mas na peculiaridade que cada instrumento tem, a profundidade que cada instrumento chega e este percorrer que a música traz. E também seu dizer. A música não é apenas um seguir de notas, a música é verbo. Contudo, eu sempre tive este problema do solfejo, da leitura – eu sou disléxico – mas, eu desenvolvi meu ouvido. Ouvir mesmo, apurar e conseguir por isso em meu corpo. Eu consigo pegar uma música e dividi-la em todos os instrumentos que a compõe. Salvo uma confusão ou outra, eu consigo abrir, pelo menos, quatro instrumentos que estão executando uma partitura. Isso é muito rico e isso se tornou um diferencial. Eu consigo, com isso, não trabalhar para a música, mas torna-la minha. Como se ela tivesse sido composta pra mim. Isso permite trabalhar com músicos que vão pegar o tempo que quero propor para o meu corpo e aplicar isso na execução de uma obra. É pegar este mecânico e torna-lo sublime e vivo como ele é. Isso faz com que que ela (a música) seja minha, naquele momento. Sou um musicista, sim, com meu corpo.

  1. DEFINA “Produtor de mim”.

Trabalho. Ah… Muito trabalho! Porque o ambiente artístico traz toda a liberdade que um ser humano é capaz de fabricar. Só que também este é um meio muito restrito. Então, não é só uma questão da minha tarefa fim, que é o desdobramento deste meu trabalho artístico diante do olhar do outro. É também essa questão de pensamento, de congruências de teorias, mesmo que não falem especificamente da dança, ou de uma produção artística, mas que, sim, trazem embasamento pra isso. Tudo o que eu desenvolvo artisticamente, tudo o que me toca, afinal, sobre o que estas coisas dialogam teoricamente? Até para que eu possa vender isso com o embasamento de mim e de tudo o que me acarreta ser. E também existe a dúvida, porque eu trabalho sob a perspectiva da intuição, que pode ser boa, mas que também pode me segurar. A minha necessidade atual de visibilidade fala: “Vá!”. O meu chamamento de si, minha consciência analisa e vê o que pode ser feito… então, é muito trabalho! Hora sou aprendiz, hora sou mestre é bem complicado! Em um passo sou aprendiz e em outro sou mestre… Mas, o pássaro só aprender a voar se ele sai do galho, se ele pula… Só assim ele voa.

  1. DEFINA “Cartografia do corpo-texto”.

Isso é muito importante para a impressão que trago do meu trabalho. A cartografia não é só o alfabeto que o corpo contém, porque todos nós temos as especificidades dos nossos corpos. Cada corpo é diferente, nenhum corpo é igual. E dentro destas diferenças o corpo é capaz de atingir extra-limites (sic) que eu defino como “o alfabeto que contém”. Agora, o dizer contido dentro deste extra-limite é a própria cartografia. É essa linguagem que o corpo passa a desenvolver e que não fica restrita só de uma maneira. Ela se amplia para diversas propostas. Quando eu voltei para o Brasil, pude aplicar o seguinte pensamento: “Quando vou desenvolver um trabalho, não gosto que hajam semelhanças de partituras”. Eu gosto de pensar a mão, a cabeça, o rosto, o que precisa acionar de musculatura pra fazer aquela composição. Sempre me ponho no limite do pular para o penhasco. E faço isso porque a cartografia que o corpo pode desenvolver é algo muito legal! Se o corpo é universal e atinge diretamente o outro (puf!) a amplitude disso quem faz é a cartografia. Ela faz a agremiação de sujeitos diversos e diferentes e que são iguais!

  1. O QUE É “A violência que é bela”?
Foto: Vini Fred Gustavos

Eu tenho uma exemplificação que é bem pesada, mas eu enquanto artista mergulho naquela situação de alegria, ou de dor. Em tudo o que a mente é capaz de nos levar e os olhos também. Não é que eu seja frio. [Aqui, Vinicius descreve, em detalhes, um acidente que ele presenciou logo após atravessar a fronteira de Moçambique com a África do Sul, onde sete pessoas morreram, mas que o motorista sobreviveu e Vinicius pode ver e analisar a cena dele observando a cena trágica à sua frente.] Eu acho muito louco estas coisas da vida! Porque nós estávamos entre montanhas, era um dia belíssimo, era uma cena de filme: O sangue, a cor que o corpo tinha no corpo dele (ele era albino), a dimensão da dor… Eu não me lembro de ouvir sons, mas a cena era de uma beleza do horror que faz a gente parar, olhar, diminuir a velocidade, aumentar a audiência, as pessoas ficam ávidas querendo ver a miséria humana e como nós somos insignificantes. E dentro desta insignificância há uma beleza muito grande! Pense em uma lagartinha que está em sua salada. Umas são assim, transparentes, dá pra ver os órgãos internos dela, tudo se mexendo… Ela resiste ao químico que a gente põe pra lavar e ela está ali. Ela está plena. Mas, se eu pegar meu garfo, ou meu dedo, e apertar um pouquinho ela explode… E a forma como ela explode, os fluidos dela, o que eles formarão no entrono… É bonito! É diferente e é único. A violência traz a beleza da câmera lenta. O choque passa pelo corpo de uma forma tão forte que a pessoa pode perceber aquilo de outra forma. Às vezes, a pessoa desliga, ´não lembra de nada por conta de um supertrauma (sic) da poética da violência! Ela é tão absoluta que tem a capacidade de se tornar ausente em uma pessoa. Mas, ela ainda vive naquilo. É muito poderosa. Tem uma beleza única de ser. Eu gosto de me aprofundar nisso.

Eu acredito que o que eu sou, ser humano, esse ser é muito condicional. E é muito bom ser “ser humano” e poder falar dos meus erros e acertos, das minhas constituições, dos tantos eus que tenho dentro de mim. É interessante como a gente se restringe muito ao outro, que a gente vê e acredita em certas coisas, que só existe aquela possibilidade de existência e… Não! Humano é humano e poder escrever isso através da arte é algo muito precioso porque a sensibilidade é algo muito raro. Principalmente hoje em dia, pois permitir-se à sensibilidade é abaixar vários muros. Mas, este ser sensível traz potencialidades. Não sei se ainda em vida verei os frutos desta potencialidade, mas eu acredito nela e que, em algum momento, alguma coisa haverá de acontecer das pessoas verem que veem como eu.

 

*Amauri Lobo, poeta, músico, professor, produtor cultural, caximir.

 

 

 

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here