A leitura de um livro sempre traz desassossegos e possibilidades. Quando o autor nos antecipa se tratar de algo distópico, então, cria outra expectativa, até pela banalização do vocábulo nos meios literários e booktubers. Mas “Calote”, de Leonardo Valente, atravessa esse “continuum” com vigor. Confesso que nas primeiras vinte ou trinta páginas senti certo desconforto. Conhecer aquela mulher foi me incomodando; talvez pela lembrança que veio de como é difícil (sobre) viver pagando o mínimo das faturas de cartão de crédito, foi isso.

Sonho com uma revolução, não sou comunista, mas com certeza votaria em um stalinista que estatizasse imediatamente todos os meios de produção, pois significaria ao mesmo tempo o fim das dívidas que me atormentam, e minha promoção para a condição de funcionária do Estado. (VALENTE, 2020, p. 32).

Leonardo Valente, foto do Facebook

Davi e Helena são dois antagonistas de peso, manipulados por Marlene, esta mulher que narra; de suas memórias se edificam as relações complexas entre o “casal”. A alternância entre a fatura do cartão e a insubordinação civil dá prosseguimento ao monólogo inicial que nos põem em contato com os dramas pessoais da narradora, de quem temos a sensação de saber (quase) tudo. “O mundo do trabalho hoje só nos permite ficarmos próximos de quem trabalha com a gente. Todos os demais vão se tornando desconhecidos”. (VALENTE, 2020, p. 39).

Davi é filho de seu ex-marido e nem conhece o (meio) irmão mais novo, pois havia ido para São Paulo com a mãe enquanto os irmãos ficaram com a (sua) mãe no Rio de Janeiro. Eles, oriundos do subúrbio, mas que viviam com dificuldade na Zona Sul da cidade, discurso a que o leitor já foi apresentado pela retórica inicial da protagonista. Os contrastes sociais são apresentados de modo a situar o leitor no cenário do “crack”. Marlene mora com os filhos em Botafogo e trabalha na Barra da Tijuca, em uma empresa varejista de capital chinês.

Imagem de Gerd Altmann por Pixabay

As relações comerciais, industriais e financeiras são mimetizadas pelo cotidiano de cada um. David é executivo de um banco (há que se lembrar que os judeus imperam no mercado financeiro) e especialista na área de investimentos para quem

As massas converteram-se em indivíduos e os cidadãos em clientes. A noção de bem comum foi reduzida a performances estatísticas de pesquisa de satisfação e o sentimento de pertencimento por identidade e pelo compartilhamento de direitos foi trocado pelo vazio. (VALENTE, 2020, p. 65).

Amante de Helena, sua diretora-assistente (que babado, não?!), acorda certo dia com um telefonema do imediato, avisando-o de um imprevisto que pode colapsar o sistema financeiro.

Fiz os cruzamentos por região e faixa social, e sabe o que descobri? Que quase todos os que ainda não fizeram seus pagamentos são das classes, C, D e E. Os números de não pagamento das classes A e B são praticamente desprezíveis, o comportamento de quase todos dessas duas faixas é normal. (VALENTE, 2020, p. 77).

As batalhas a que David será submetido talvez sejam análogas às do Rei Davi, que unificou o Estado de Israel na luta contra os filisteus. O envolvimento com Helena, que nos remete à Guerra de Tróia, inunda de possibilidades de interpretação. “Executivos em posição inferior na cadeia alimentar precisam se alimentar da boba ilusão de que um dia chegarão à glória. Caso contrário, perecem diante do trabalho escravo e da entrega do corpo e da alma”. (VALENTE, 2020, p. 93).

A briga pelo poder e a dificuldade de interpretar os fatos a que o executivo foi se colocando criam um impasse no qual a habilidade de lidar com os acionistas coloca Helena em destaque – imaginem a cabeça dele. “É claro que queria bem mais, se possível sua cabeça [de Helena] em uma bandeja de prata, mas isso não seria pauta de negociação, mas de articulação no momento certo”. (VALENTE, 2020, p. 102). A disputa de poder no ambiente corporativo, em tempos de crise, é desencadeadora de mudanças radicais, a que muitos chamam de oportunidade.

A narrativa é auto reflexiva, cirúrgica, para o momento em que vivemos. Helena e David são exemplos de antagonistas que não apenas fazem sombra ao protagonismo, mas como demonstram a força de personagens que orbitam o núcleo da ação principal e fazem a ponte do geral para o particular ter importância para a construção sígnica da ambientação. Gosto dos diálogos de Valente, poucos, mas decisivos; metáforas como a de Salomé e João Batista também surgem de modo definidor de princípios.

A palavra COVID surge uma única vez, à página 127, embora em minha cabeça ela estivesse presente desde o início. Considero exemplar esse detalhe pelo fato de que o autor não se deixa embotar por um fato para estruturar sua narrativa, o que muitas vezes vira panfleto. A animização do calote justifica o título, traz musculatura. A sedução pela janela aberta, espécie de haraquiri contemporâneo é bem bolada. Acho até que podia terminar por ali. “Hoje, em no máximo meia hora, estarei na portaria, vestida de outra personagem, ciente da inversão de papéis, e pronta para uma cena bem diferente”. (VALENTE, 2020, p. 172).

REFERÊNCIA

VALENTE, Leonardo. Calote. Itabuna, BA: Mondrongo, 2020.

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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