Mal acabou de lançar a última pá de terra

O primeiro saiu grande, bonito,

Através da vidraça, a outra,

Quando mamãe me dizia boa noite,

Onde fica o fim do mundo?

Depois da pá de terra derradeira, estou certo que fica além das referências bibliográficas do último livro a ser impresso neste mundo. O mundo que é feito de gestos, lugares e de palavras. De poemas, crônicas, romances e muito conto. Conto esta história para me livrar do verbo que me cala o espírito e salta pela boca, além da língua que sibila.

Quando vó dizia llllch, que noite morta!

Lázaro nasceu num mundo opaco.

Ele era o alvo de todos os nossos olhares e devaneios.

Seja homem, Aldinho!

Lazarento, alguém me disse um dia. Logo eu, que sou homem, nascido há 56 anos. Conheci Maria Valéria Rezende em maio deste ano durante o IV Clisertão, em Petrolina, evento acadêmico internacional promovido pela Universidade de Pernambuco (UPE). Carlos Barros, Fátima Braga, Valéria e Eric Nepomuceno foi o quarteto com quem mais convivi naqueles dias. Falamos muito de livros, de arte, acho até que de política, mas não estou bem certo disso. Trocamos livros, dei a ela o meu Xibio e recebi em troca A face serena.

Ana Clara senta-se na cama,

Lena ouviu a palmada no lombo de Pé-de-Seda,

Alzira torce no bocal a lâmpada

Jorge Eduardo suspirou, satisfeito.

Sentado na cama do hotel, li pouco, mas trouxe na bagagem bastante peso. Deixei livros para venda no Rebuliço, sebo do Maurício, ouricuriense que escolheu Petrolina para viver, às margens do Velho Chico, lugar bom para poesia, creio que Manoel de Barros diria isso se estivesse com a gente. O livro de Valéria ficou quietinho na minha estante, vendo outros chegarem, aos montes, sem reclamar a minha atenção.

Todos os meus livros sabem que terão chegada a sua hora e esperam pacientemente. Sei a hora de cada um; quando não sei bem, faço como me diria Clarice: adivinho! E não sofro por antecipação. De noite, chegando ao hotel, não conseguia avançar muito nas leituras, devido ao dia cheio de atividades do evento.

Uma noite, quando Bárbara

Aurélia enfia pela cabeça o vestido solto,

A cena podia ser do longínquo 1950.

Puxa vida. No ano de 1950 ela já tinha oito anos de idade. O que será que lia uma menina de oito anos quando Getúlio Vargas foi reconduzido pelo voto ao cargo máximo da política nacional? Eu tinha menos doze anos nessa época. Deve ter sido um ano bastante movimentado.

Durante o resto do ano

O poeta não acredita de modo nenhum em inspiração,

Esta história só poderia começar

Uma teia começou a formar-se,

Me leva carreiro,

Quando Eleonora esticou o braço para apagar a luz,

O inspetor Parrot sai para a calçada apressadamente,

Insistem, insistem, brigam, gritam,

Hoje fecharão a última brecha do muro.

Cada uma das estrofes forjadas que entrecruzam esta narrativa imitam a estrutura de um poema irregular, mas são na verdade as palavras introdutórias de cada um dos trinta e sete contos do livro. Porque eu as juntei nesse formato? Porque elas são introduzidas em destaque, todas em “caixa alta” e percebi que poderiam significar alguma coisa (ao menos para mim). Resolvi arriscar.

Eu, Samuel Barriga, aposentado,

Sei da história toda porque me foi contada

No princípio era apenas um gosto,

Envolvido com gosto na lida da dura matéria,

Já de longe, do alto da colina,

Tísica avançada, perto de morrer,

O papel chegou pelo correio e ficou perdido,

O táxi já espera à porta.

Não se trata de letras mortas, embora haja muita morte em toda a construção narrativa. Mas do primeiro ao último conto, o que mais me chamou a atenção foi o conjunto de situações em que dentro e fora sugerem movimentação intensa, com plurissignificações. “Escapar dali a qualquer preço, meter-se, arranhando-se, pela fresta de uma janela aberta…” (REZENDE, 2018, p. 32); “tentando encontrar uma saída daquela armadilha” (idem, p. 36); “rebenta a cerca e passa toda hora pro quintal de casa” (idem, p. 37); “deixa a janela da sala só encostada pra não fazer barulho” (idem, p. 39); “escapou pra fora” (idem, p. 40).

Mas às vezes a imagem concentra-se em algum enquadramento, sem espaço para fugas. Como na citação abaixo:

Num canto da caixa, uma latinha de pastilha Valda, meio enferrujada, e uma fotografia em branco e preto de um grupo de crianças, mero instantâneo sem nenhuma arte, em que duas cabecinhas bem juntas estão emolduradas por um canhestro círculo de tinta vermelha (REZENDE, idem, p. 43).

Mas o entra e sai e seus interditos continua em seu moto-contínuo: “não vá, Edu, não vá pra rua,…” (idem, p. 49); “ouviu o ruído da chave na porta” (idem, p. 63); “buscou fora de si, pela casa toda” (idem, p. 77); “destrancar a porta do apartamento” (idem, p. 95); “nada nem ninguém poderá entrar ou sair” (idem, p. 101); “uma porta que rangia” (idem, p. 104); e tem também a porta do guarda-roupa com espelho – que também sugere algum tipo de aprisionamento, o conjunto das estantes de livros e demais molduras intertextuais. Ah, Bachelard, sua poética do espaço tem me voltado – à mente por estes dias.

Vida que segue com a morte à espreita. “Entregou-se aplicadamente ao estudo das vidraças” (idem, p. 121); “na garagem do próprio prédio em que morava” (idem, p. 126); “caixa de ferramentas” (idem, p. 136); “insistência em ficar agarrada às grades do portão” (idem, p. 154); Para tudo se acabar com a imagem do “Instituto médico legal de laudo cadavérico” (idem, p. 156) e a informação derradeira de que “Benvinda tinha pressa,” (idem, p.156).

Esses dias disse a Itamar Vieira Júnior que a gente não deve ter pressa pelo reconhecimento. Ele é concorrente ao Prêmio Jabuti deste ano na categoria conto. Prêmio é prêmio, e é como final de campeonato, pode até haver favoritismo, torcida, essas coisas. Não dá para simplesmente dizer que ganhe o melhor, pois como saber o que é ou quem é o melhor? Melhor para que, para quem?

Se você gosta de saborear o cânone, desafiá-lo, que arrisque o seu palpite. Eu sei que tenho ganho diariamente pelas escolhas que faço. Sou apaixonado pela literatura brasileira. Para que pressa se o nome do prêmio é Jabuti?

 

REFERÊNCIA

REZENDE, Maria Valéria. A face serena. Guaratinguetá-SP: Penalux, 2018.

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

  1. Nossa, Luiz Renato! Com a vida complicada que tive no ano recém falecido, sobretudo de julho para cá, só agora li seu texto tão atiçador! Agora me sinto obrigada a ler esse tal de A face serena, sem delongas, pra ver melhor “que diabo é isso” que eu escrevi!!!!

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