Retomam o silêncio de antes. Um espectro nauseante os envolve. São todos homens de sangue. Em sua maioria, matando para os outros, como abatedores em um matadouro. Uns compram a morte; outros a vendem como mercadoria (MAIA, 2017, p. 29).

Fechada a temporada dos prêmios literários. A maioria dos concursos de expressão já apresentou seus ganhadores, em meio ao caos do mercado, ampliado pelo pedido de recuperação judicial de gigantes do setor varejista, o que compromete ainda mais a cadeia produtiva. O leitor é sempre o mais prejudicado, pois a diminuição do fluxo diminuirá sensivelmente as publicações, encarecerá o produto e por aí vai…

Ana Paula Maia é um dos destaques de 2018, sem dúvida, não apenas pelo faturamento de melhor livro do ano – Prêmio São Paulo de Literatura, mas pelo conjunto de uma obra que mantém unidade temática e linguagem ímpar no cenário contemporâneo. Desprovida de lirismo e de qualquer tipo de afeto que ligue personagens a leitores, pavimenta de maneira sólida e inconteste seu nome no painel das letras brasileiras. A crueldade do ser humano e sua inadequação ao convívio social parecem emergir de uma tinta fresca que se deita sobre o papel e tira do olhar a segurança que mantém os pés firmes no chão. Que chão!

Em “De Gados e Homens”, trata com habilidade as relações de um “eu” contido em personagens sórdidos com outro “eu”, travestido de “não eu” sobre o qual a diegese deposita infortúnios de variada espécie. “É bom eu desmontar, seja o motor de um carro, um boi, uma onça ou uma casa, pois é capaz de demolir até paredes a golpes de martelo em poucas horas” (MAIA, 2013, p. 24). E assim promove o desmonte da humanidade idealizada que habita a pele sobre a qual se inscrevem outros discursos. O ciclo produtivo da carne é lembrado metaforicamente do pasto ao fast-food – quando a antropofagia atua de maneira conotativa, livre de qualquer lembrança que atormente o freguês, como se observa na sequência a seguir: “Lá na fábrica de hambúrgueres a brancura reflete uma paz que não existe, um clarão que cega a morte. Todos são matadores, cada um de uma espécie, executando sua função na linha de frente (p. 45).

Foi com prazer que me encontrei novamente com Edgar Wilson, conhecido de “Enterre seus mortos” (2018), um homem que trabalhava recolhendo corpos de animais mortos nas estradas. Aqui, diante de uma realidade mais cruel, como a daquele dia em que foi chamado para recolher um corpo humano, fato fora da normalidade para sua atividade laboral.

Após a leitura do premiado “Assim na terra, como debaixo da terra”, deparo-me com outro personagem que atravessa de um livro a outro as narrativas de Ana Paula. Trata-se de Bronco Gil, filho de um homem branco com uma índia. Fruto de um estupro. “Bronco Gil não é um homem bom e sabe disso, não espera ser tratado de acordo com seu caráter, mas de acordo com sua conduta dentro dos muros” (MAIA, 2017, p. 27). “Enterre seus mortos” é de 2018, “Assim na Terra como debaixo da terra”, é de 2017; De Gados e homens é de 2013. Edgar Wilson aparece primeiro em 2013 e retorna em 2018, certo? Bronco Bil também surge em 2013 e reaparece em 2017.

A escritora carioca busca um entrelaçamento que cria efeitos de continuação, de anticlímax temático similar a um trilher de suspense que nos embrulha o estômago. Mas não dá para parar a leitura antes da náusea que certamente está por vir. A cada página novo golpe. Muitas vezes o título de um livro nos deixa a meio caminho entre o descaso e o lugar-comum. Esses romances de Ana Paula colocam o humano lado a lado com o instinto animal, do qual talvez seja mesmo subproduto. A cena em que o baú com recheio surpreendente é desenterrado nas proximidades da colônia penal é de dar um nó nas tripas. Pequenos esqueletos que, somados às carcaças de animais contidas nos três livros, provocam engulhos em plena luz do dia.

Lembro-me do livro de memórias de Pedro Nava. Não pelo conteúdo, mas pelo título que demonstra o poder da memória quando engaiolada em velhos corpos que pensam: “Baú de Ossos”. Já saboreio o futuro dessa artífice quando trouxer à tona as memórias de um tempo de escritora. Adivinho coisas boas por detrás da cortina; pareço sentir o cheiro de uma espécie de carvão que começo agora a perseguir. É esse o Brasil que a gente precisa, o que se esconde dentro das páginas de um bom livro, cuja criptografia tem sido obstáculo para as cabeças pensantes. Por um letramento de humildade e preocupação com a capacidade de se apaixonar pelos valores que o humanismo trouxe à tona, um dia…

REFERÊNCIAS

MAIA, Ana Paula. De Gados e Homens. Rio de Janeiro: Record, 2013.

_____________. Assim na terra como debaixo da terra. Rio de Janeiro: Record, 2017.

 

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here