A teoria do iceberg se faz presente em inúmeras narrativas, mas em algumas a função extrapola os preceitos básicos. “A ponta do silêncio”, de Valesca de Assis, é uma delas. O romance de apenas 84 páginas é exemplo de concisão e a textura não se deixa afetar pelo espaço diminuto em que se acomoda. Parece coisa de gaúcho, mas para falar da escrita de Valesca invoco a presença de Luis Antonio de Assis Brasil que, por sua vez, traz Josué Guimarães para a conversa:

Luis Antonio de Assis

Perguntei a ele o que considerava um enredo convincente. A resposta: “ Essa é fácil, meu jovem, eu li num livro: se o personagem morre de tuberculose pulmonar no décimo capítulo, deve ter tossido um pouco no quarto capítulo, ter baixado no hospital no sétimo, até morrer naturalmente no décimo. Isso é que convence o leitor. E basta de teorias que a van já chegou”.

Mesmo que não tivesse chegado, eu já tinha a resposta.

O enredo convincente é aquele em que não há evento sem motivo que o provoque, mesmo que esse motivo seja apresentado a posteriori, como acontece nos romances policiais. (BRASIL, 2019, p. 159-160).

A obra apresenta vinte e seis capítulos numerados, exceto dois. O de abertura intitula-se “Depois do almoço” e o outro surge entre o sete e o oito, “Marcos, o outro, e muitos anos depois”, sendo que um mesmo evento promove a ligação intestina entre eles: a morte de Marcos, ex namorado de Vivian, pai de Renate, filha de Vivian, filha de Marga, a mãe de Vivian. A costura narrativa se enlaça feito um bordado do tapete, objeto análogo ao tecido da escrita.  E o encadeamento dos temas e motivos conduz o leitor pelo labirinto. A segunda epígrafe, extraída de Hamlet anuncia alguma especie de tragédia familiar, que se confirma na escrita.

A capa do livro ganha um significado especial depois da leitura. O caule de uma rosa (aparentemente seca), curvada, mas ainda em riste e, ao invés de espinhos contornando-a o que se vê são extremidades pontiagudas de um arame farpado, elemento que demonstra o insólito presente nas relações amorosas. Digo amorosas por conta da metáfora da flor. O engaste na imagem de uma capitular em vermelho (A) põe em evidência comportamentos sanguíneos na estrutura.

O segredo que a menina guarda do atropelamento do ciclista no início do romance grita por dentro, guardado apenas para si (e para o leitor), enquanto segue seu caminho de volta para casa. E então, “In media res” a narrativa se apresenta ao leitor após este (fim) iniciático, repleto de pistas, indícios e sinais que se acumulam até uma as revelações maiores que estão por vir.

É lugar comum nos curso de escrita criativa treinar o olhar dos escreventes acerca dos aspectos que se encontram no entorno das narrativas, na base das motivações, no desenvolvimento do texto. O que importa realmente ao leitor, daí a importância de se formar o escritor como um leitor atento que consiga em suas obras criar esse interesse no leitor, para além dos clichês habituais que estão por aí. Francine Prose sabe disso. Em seu livro “Para ler como um escritor”, no capítulo 9, “Gesto” ela considera importante atentar para o fato de que

Escritores cobrem páginas com reações habituais (seu coração bateu forte, ele torceu as mãos) para situações habituais. Mas, a menos que o personagem faça algo inesperado ou inusitado, ou verdadeiramente importante para a narrativa, o leitor suporá essa reação, sem precisar ser informado sobre ela. (PROSE, 2008, p. 207).

O ato de observação forma o leitor, como também o escritor. As cenas extraídas do cotidiano cada vez mais são reproduzidas na literatura, o que traz para o campo da narrativa uma verossimilhança contemporânea mais natural do que a que envolvia as narrativas do século XIX, por exemplo.

O segredo da menina sobre a morte do ciclista se apresenta ao leitor novamente no outro capitulo não numerado. Agora, sim, o leitor tem a certeza da morte de Marcos. E as informações importantes sobre o impacto dessa notícia no desenvolvimento da história. Não vou me ater aqui a históricos psiquiátricos, ou mesmo quantitativos acerca de temas da ordem psicanalítica que se encontram imersos no universo da família em torno da qual se constrói a narrativa.

Valesca de Assis

O impacto de um crime, bem como os desdobramentos na pequena cidade de Cruzeiro, ficam para depois, assim se desperta a curiosidade do leitor. Valesca de Assis traz pequenas marcas de uma cultura teuto-brasileira que atravessam a obra de maneira singela, como o nome do comércio da família de Rudy ter o nome de Danúbio Azul, por exemplo. Como é sintomático que a empresa quebre, após a morte do patriarca. Duas referências se fazem lembrar com este nome: o rio Danúbio, que nasce na Alemanha e, sendo o segundo maior rio europeu atravessa boa parte do continente. E a valsa de Strauss, (talvez) mais popular na Áustria do que o próprio hino nacional.

A tragédia anunciada faz deste livro objeto importante de reflexão a partir de uma boa história. O que fazer com isso tudo cabe ao leitor. E que ele saiba que a ponta desse silêncio descortina um universo submerso de informações sobre a condição humana. Desde Ernest Hemingway vem se descortinando a tal da teoria do iceberg. O mergulho pode ser fatal para o desenlace de sua próxima leitura.

 

REFERÊNCIAS

ASSIS, Valesca. A ponta do silêncio. Porto Alegre: BesouroBox, 2016.

BRASIL Luis Antonio de Assis. Escrever Ficção. Um Manual de Criação Literária. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

PROSE, Francine. Para ler como um escritor. Rio de janeiro: Zahar, 2008.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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