Ivy Menon

Com menos de quatro anos, meu irmão, Carlos, comia pimenta malagueta como se fosse chocolate. Passava o dia a zanzar por volta da nossa casa feita de madeira e frestas, a procurar com o que brincar. Podia ser boi de bucha, o cachorro vira-lata pulguento ou poças que construía com uma vareta e o resto d’água da bacia abandonada perto da tábua de bater roupas. Enquanto nós, os maiores, íamos ajudar na lavoura ou no cuidado da irmãzinha, ele inventa traquinices.

Carlos aprendera cedo a ser o quarto filho. Quase nada o atingia. Na época em que meu irmão começou a comer malagueta, vivíamos um dos piores tempos de abandono e fome. Passamos cerca de três meses a comer feijão com abóbora. Conseguíamos trazer serralha ou almeirão nativos para salada. Depois amargamos outros meses de macarrão cozido com água, sal e uma isca de banha. A mãe prestes a dar à luz ao sexto filho. Abaixo do Carlos ainda tinha outra. A mãe, a mais faminta e desnutrida de todos, porque dividia o pouco que lhe cabia.

Assim, quando íamos para a roça ou ajudávamos a cuidar dos cacarecos e de uns poucos animais, Carlos ficava em casa. Ninguém mais se preocupava com ele. Falava pouco. Ria sozinho e de qualquer coisinha. Vinha para dentro quando chamado para o almoço, para o banho de balde e para o jantar. Acostumamo-nos a não prestar atenção na ausência dele.

O pai enlouquecido de dor por não conseguir sustentar a família, muitas vezes voltava para casa depois de passar em alguma venda de beira de estrada. Sempre encontrava amigo que lhe oferecesse cachaça. Foi naqueles tempos que aprendemos a caçar rãs. Às vezes umas rolinhas. Anos depois nos ensinaram a comer caruru, beldroega e outros matos, além de mamão verde refogadinho. Nossos olhos campeavam alimento, a alegria do dia.

Carlinhos transitava pela vida. Parte da família e sozinho. Do nada, começou a rodar como se estivesse bêbado e caia no chão a rir e a chacoalhar a cabeça. A mãe ralhava. E ele ria. Ninguém conseguia entender o que se passava até que, depois de uma semana a tombar pelos cantos, a febre o apanhou. Ultrapassou os quarenta graus.

O pai largou a lida no cafezal e correu em busca do socorro dos médicos, na cidade. Carregou meu irmãozinho no colo, uns cinco quilômetros, no carreador de terra vermelha e sol escaldante, em busca de ajuda. Puro ossos e olhos azuis, o menino calara o riso de deboche que estava sempre em sua boca de pimenta e fome. Seus lábios secos ardiam.

Eu estava com eles. Cansados, paramos às margens de um córrego. Água fresca e limpa, o pai entendeu que se lavasse o rosto do menino a febre baixaria, então molhou-lhe o rosto afogueado. Ouvi o gemido do meu pai: “meu Deus, Carlinhos sofreu estupor”. Uma das faces paralisada. Choramos. Carlos ainda mantinha quase um riso torto.

Chegamos a tempo no Posto de Saúde da cidade. O médico examinou garganta, pulmões, possível rigidez do pescoço causada por meningite … e nada. Olhou os ouvidos com a lanterninha. E, horrorizado, descobriu larvas de moscas perto dos tímpanos do meu irmãozinho: “Os bichos têm cabelo”, falou baixo o doutor, com um deles preso na pinça. E foi arrancando, um a um, sem anestesia. Um ninho. Carlos não chorou. Nem se mexia.

Injeção de Dipirona. Xarope de penicilina. E as lágrimas do nosso pai. Voltamos para casa sabendo o porquê de o menino cair tantas vezes bêbado de agonia pelo chão. Nada podia ser feito quanto à paralisia a não ser esperar.

Febris, famintas, estuporadas, nós crianças pobres vivíamos de esperas. Aguardávamos que os males se tornassem ontem. Um dia de cada vez. Não se tratava de esperança, mas de resistência. A vida tinha-nos ensinado.

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

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