Esse não é o meu lugar de fala. Mas, enquanto jornalista o meu dever é escrever sobre os temas urgentes e necessários. O jornalismo, para mim, é um constante exercício de empatia. Narrar histórias que não te pertencem. Ter essa noção é saber o tamanho da responsabilidade de dar voz às diferentes e diversas perspectivas sobre o mundo, apresentar fatos, dados, contextualizar a história, conceitos, trazer a ciência, conhecimento. E tecer tudo isso para que o leitor se informe e exerça o pensamento crítico. Faço esse parêntese pois sinto ser essencial para que eu possa discorrer sobre racismo estrutural no Brasil e as desigualdades que perpassam a maior parcela da população no país.

Foto Jorge Ferreira / Mídia NINJA

Quando se fala em racismo estrutural e mito da democracia racial é preciso descer do pedestal dos privilégios e deslocar a ótica colonizada para enxergar as realidades que não nos pertencem (a nós pessoas brancas e principalmente de classe média e alta). Digo isso porquê um grupo do qual participei sobre literatura, em um curso pago – ou seja, de certa forma, excludente à enorme diversidade social -, do qual havia apenas um único aluno negro, não entendeu o meu poema: política de estado. Nele, afirmo que não vivemos em uma democracia. E por mais que existam acessos e políticas públicas que trouxeram avanços indiscutíveis para a sociedade brasileira, como saúde pública gratuita e cotas para ingresso nas universidades federais, uma grande parcela da população não possui seus direitos e garantias fundamentais. Se assim o fosse, indígenas e quilombolas teriam suas terras devidamente demarcadas e homologadas, um deputado que profere falas racistas seria preso, não haveria uma diferença média salarial de 74% entre trabalhadores brancos e pretos e pardos, e não teria aumento de 33% nos homicídios de negros em um período de 10 anos.

O fato é que 56% da população, composta por pretos e pardos, não está representada na política, não possui os mesmos indicadores de renda, condições de moradia, escolaridade, acesso a bens e serviços, além de estarem mais sujeitos à violência. Neste sentido, as mulheres negras sofrem ainda mais com discriminação, violência – são mais assassinadas e estupradas que as mulheres brancas, por exemplo -, recebem os menores salários, e conseguem os empregos com menos qualificação. E vale lembrar da política de encarceramento da juventude negra. Na educação, negros representam apenas 16% de todos os professores das universidades públicas e privadas. Há somente 13 mulheres negras na Câmara Federal e a Associação dos Juízes Federais estima que juízas negras correspondem a 1% da magistratura brasileira.

Foto Jorge Ferreira / Mídia NINJA

Olhar para esses dados é perceber a profundidade das distorções na nossa sociedade e entender que o racismo estrutural decorre de uma injustiça social, cuja reparação histórica nos cabe fazer enquanto herdeiros desta herança colonialista e escravocrata. Esses fatos são a realidade posta no Brasil, o último país a abolir a escravidão. Foram três séculos. 300 anos. Essa ferida ainda sangra, essa chaga segue aberta. Agora, me recolho ao meu lugar e dou espaço para Aline Ferreira, do coletivo Aloka de Efravirenz, que fez um discurso forte durante o Encontro Juventudes hiv/aids. Sua fala, feita fora do microfone, fez reinar o silêncio na sala. Todos os rostos e atenções voltados para ela. Sua voz firme ecoou para além daquele tempo-espaço e reverberou pela história do mundo.

“Eu não sei a branquitude, não posso falar dela, mas nós, negros, nunca usufruímos deste estado pleno de democracia, de estado de direito. A branquitude tem muito que aprender com a gente. Quando falamos de quilombo, além de um resgate histórico, falamos de uma forma de organização política, de uma guerra que a gente traz de volta, que é uma guerra em movimento. Nós estamos em guerra, uma sofisticação da guerra que não é só pela bala, mas também pelo discurso. Realmente, vivemos um cenário tenso, nossos direitos cada vez mais sendo negados, está ficando mais difícil. Direito não tem, mas nunca teve também. Nunca estivemos em uma posição confortável. E os mundos acabam mesmo, mas é nos escombros que conseguimos construir outras coisas.

Se a gente conseguiu lá atras, no século 17, romper a floresta atlântica e fazer resistência que durou mais de 100 anos em Pernambuco, também conseguimos agora. Estamos aqui vivos, construindo várias coisas, resistências, artes, maneiras de pensar e cuidar, para além de pensar o quanto tudo está difícil, é pensar que podemos aprender com resistências que vieram antes de nós e melhorar elas.

Fico feliz que a branquitude esteja começando a ficar assustada, fico feliz mesmo, porquê isso é coisa que denunciamos desde 1500, e só agora somos ouvidos, porquê só agora gente branca está começando a morrer também. Espero que agora comecem a acordar para pensar outras formas de se organizar, que não seja só ficar sentado no seu próprio privilégio. Já que tem tanto privilégio, que tem voz e espaço, que use isso para alguma coisa e não só ficar assustado porque o céu virou noite em determinado dia“.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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