Algumas experiências nos atravessam. Foi isso o que senti ao presenciar toda a troca, compartilhamento, resistência, afeto, cuidado, durante o Encontro Juventudes HIV/Aids, em São Paulo, no dia 1 de setembro. A urgência do tema, o sucateamento da já combalida saúde pública, a proximidade do assunto, me despertaram para a necessidade de participar desse momento, quando fui convidada pela Agência de Notícias da Aids para realizar a cobertura e escrever a respeito. O encontro ocorreu com a mobilização da Rede de Jovens Vivendo com HIV/Aids e reuniu jovens de todos os cantos do Estado paulista. O impacto das histórias me fez perceber como a realidade vivenciada por tantas pessoas – que nem sabemos ao certo quantas, devido a falta de dados – é totalmente desconhecida para grande parte da sociedade. E em meio a histórias tão diversas, mas marcadas por uma dor em comum, a solidariedade, o amor, a força, se fazem presentes, vivos, como resultado de todas as experiências de vida. O Brasil já foi referência mundial pelo tratamento gratuito e acesso ao sistema de saúde, agora passa por um acelerado desmonte imposto pelo antigoverno bolsonarista. A mudança começa extinguindo a palavra Aids do nome do Departamento, que passa a se chamar: “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”.

São vidas, histórias, identidades, futuros, que sofrem com a tentativa de apagamento promovida por quem deveria proteger e cuidar. Os golpes continuam e eles seguem com o projeto de extermínio.

Fico com a frase de uma jovem na cabeça: “Sonhar é um ato de resistência”. E no caso destes jovens, sonhar é o que os movem e os fazem lutar.

As dificuldades de acesso ao sistema de saúde, preconceitos enfrentados no cotidiano, como a sorofobia dentro dos serviços públicos, e a ausência de políticas públicas de qualidade, foram alguns dos tópicos citados pelos jovens presentes, que relataram suas experiências pessoais. Os problemas atingem a juventude, em diferentes níveis, a depender da localidade, mas possuem pontos em comum em qualquer lugar, seja em Presidente Prudente ou Presidente Venceslau, municípios da Baixada Santista, ou das regiões de São José do Rio Preto, Sorocaba, Taubaté.

Mesmo diante de um cenário cada vez mais desafiador, com o desmantelamento do Sistema Único de Saúde (SUS), as palavras mais escutadas na manhã, foram: trocas, compartilhamento, multiplicação. Voluntário do CRT, David Oliveira aposta na construção e no fortalecimento de laços: “A gente se sente forte e vê que não está só”, disse.

Representando a Rede de Jovens da Baixada Santista, Maria Silvino destaca a necessidade de articulação de políticas propositivas e de escutar a voz do interior de São Paulo. Neste aspecto, ressalta a falta de espaços de acolhimento entre pares, que resultem no pensamento e formação de políticas públicas. “Individualizar é estratégia política. Você se preocupa só com o seu remédio e o seu trabalho, mas esta é uma dor coletiva e precisa de saídas coletivas”, observa.

Se alguns dos maiores problemas são o distanciamento, isolamento, e desconhecimento provenientes da doença, transformar esta realidade passa pela formação de redes de apoio e conexão. O trabalho de formiguinha da militância ganha ênfase com o compartilhamento de Rafaela Queiroz, do Movimento das Cidadãs Positivas: “O interior é desprovido de tudo e os jovens se sentem sozinhos, por isso precisamos do apoio do CRT e deste papel de formiguinha, tão importante, para que as pessoas possam se enxergar no outro.  Este laço “salva vidas”, destaca ao ressaltar iniciativas simples como a entrega de panfletos e folhetos informativos.

Da Rede de Jovens de Minas Gerais, Rafael Sann Ribeiro ressalta as diferenças entre os Estados, considerando que São Paulo conta com 350 serviços de aids e HIV, enquanto Minas Gerais possui apenas 84. A falta de oferta na saúde pública é um dos entraves para o tratamento, uma vez que muitos soropositivos precisam percorrer distâncias que superam 12 horas de viagem para buscar medicamento. Na Amazônia, pacientes chegam a ficar em deslocamento por 24 horas. “Temos que reconhecer nossos privilégios, aqui, em São Paulo tem um mínimo de conversa, que nos outros Estados não tem”, observa Rafael.

São lacunas que precisam ser preenchidas, mas que avançam com propostas como a de promoção de um encontro estadual de jovens com recursos públicos, avalia Carlos Henrique de Oliveira, que integra a Rede de Jovens São Paulo Positivo.

A divisão territorial do país acompanha as deficiências, conforme aumentam as distâncias dos grandes centros para os estados mais periféricos. “Mesmo com aparato institucional, o encontro é de pessoas. Somos corpos políticos e viver é uma grande política. É aqui que nos fortalecemos para derrubar as fronteiras e a lógica cunhada na história do Brasil de centralizar o poder em determinados lugares, e assim construirmos outra possibilidade de realidade”, divide Aline Ferreira do Coletivo Loka de Efavirenz.

A luta persiste

Abrangendo garantias e direitos fundamentais, a Constituição Federal de 1988 representa um símbolo do que se pretendia à época, após um período de 20 anos de ditadura militar: democracia plena, com liberdade e igualdade para todas as pessoas. Proteção aos direitos de cidadania, um sistema de freios e contrapesos, e uma série de previsões sociais que, na prática, não se concretizaram. Para alcançar a realidade, as leis precisam se transformar em ações afirmativas e parte desta equação só é resolvida com a participação popular. Distante para grande parte da sociedade, a política brasileira nunca retratou sua população. As decisões políticas são tomadas, em sua maioria, por pessoas que não possuem contato com a multiplicidade de realidades do Brasil. Para mudar este cenário, um dos caminhos é aumentar a inserção e participação sociais nos espaços de representatividade. Debater estas questões, para encontrar um ponto de encontro e atuar em conjunto, foi um dos propósitos do painel sobre “Direitos, Advocacy e participação juvenil pelo fim do preconceito e garantia de direitos”.

Histórias de vida tem o poder de transformar quando são contadas. A importância destas vivências é considerada pela advocacy, que é a prática de influenciar a formulação de políticas. Entre estas histórias, consta a da Isabella. Um processo que busca reparar a omissão do estado pela transmissão vertical, que poderia ser evitada com diagnóstico precoce e atenção no pré-natal, explica Patrícia Diez Rios, do Movimento de Mulheres de São Gonçalo (RJ). Desde quando nasceu, em 1996, Isabella enfrentou série de internações devido a problemas de saúde, e, ainda assim, teve pedido de benefício de assistência social negado.

Outra narrativa é levantada por Lázaro da Silva, da Rede Nacional de Jovens, que traz dados alarmantes do país: “A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil. Sete em cada 10 pessoas assassinadas são negras. Na faixa etária de 15 a 29 anos, são cinco vidas perdidas para a violência a cada duas horas. De 2005 a 2015, enquanto a taxa de homicídio por 100 mil habitantes não negros teve queda de 12%, para os negros aumentou 18,2%. A letalidade das pessoas negras continua aumentando e isso exige políticas com foco na superação da desigualdade racial”, enfatiza. Números que representam pessoas, vidas e Lázaro acrescenta que o objetivo da campanha, lançada em conjunto com a Organização das Nações Unidas (ONU), é dar visibilidade para a violência que atinge jovens negros.

Já as batalhas de ações para garantir direitos fundamentais para quem sofre com preconceitos e discriminações, devido a sua sorologia, foram divididas pelos advogados, Filipe Pombo, da Rede de Jovens São Paulo Positivo, e Dimitri Sales, do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe). Os casos trazidos dão conta de uma jovem impedida de participar de aulas de educação física e um adulto impedido de assumir cargos em concursos públicos.

“Todo aparelho estatal burocrático e a forma como o direito é posto, nos impossibilita de lutar pelos nossos direitos, dificultando ao máximo, até que ficamos desgastados de estar toda hora nesse enfrentamento. Mas temos que continuar persistindo, lutando e pensar em formas de resistência, construção de redes, de lutas, para além do direito, porque ele é posto pelo estado colonialista e colonizado”, pontua Filipe. Em sua atuação em defesa dos direitos humanos, Dimitre Sales constata que em questões raciais, de gênero, ou sexualidade, o sistema se volta contra a vítima. “Se você luta pelos direitos humanos, será uma luta árdua, porque você está lutando contra um sistema”, ressalta, observando que o atual momento histórico é marcado por um processo de desmonte do estado democrático de direito.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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