Larissa Campos

A metáfora da folha em branco cabe em muitas situações. É símbolo de começos, origens, possibilidades. Além de ganhar cores, letras, recortes, brilhos, mosaicos… o papel também pode ser dobrado de formas incontáveis. Na adolescência, comprei um livro que ensinava a fazer origamis de animais, 500 possibilidades explicadas numa mesma obra. Com uma simples folha nas mãos, eu podia criar seres que nem imaginava.

Comecei com os bichos mais fáceis, um porco nascia depois de onze dobras, para criar um cisne eu precisava de apenas oito. E havia um dragão lindo para o qual eu sonhava dar vida. No entanto, parecia algo difícil, 64 dobras até a concretização. Demorei meses para tentar e um dia consegui.

Meti o dragão na mochila, passei dias carregando-o para todos os lados. Às vezes, o colocava na palma da mão e admirava o resultado do trabalho, sem acreditar que havia dado conta. Com recorrência, um pensamento me invadia: desdobrar o bicho para, então, fazê-lo nascer outra vez. No fundo, eu queria ter a certeza de que conseguiria chegar novamente ao resultado.

Decidi desdobrar e usar a mesma folha, ciente de que, provavelmente, as marcas das dobras facilitassem a empreitada. Elas seriam a lembrança dos caminhos já percorridos, do conhecimento adquirido em algum momento. Me propus a tentar e, ao fim, com o dragão novamente nas mãos, me dei conta de que ele era diferente do primeiro, o corpo mais alongado, a calda parecia mais comprida. “Eu havia falhado”, cheguei a pensar.

Será? Meti o novo dragão na mochila, na qual ele passou semanas. Depois foi parar dentro de um livro que emprestei e nunca me devolveram – “Bombons chineses”, Mian Mian. Lembrei dos origamis enquanto lia “O mundo desdobrável”, da escritora Carola Saavedra, obra lançada recentemente pela Relicário Edições.

O novo livro de Carola Saavedra, “O mundo desdobrável”

Nas páginas do ensaio, Carola atravessa temáticas como a ditadura no Chile, a vinda de sua família para o Brasil, o apagamento das heranças indígenas (e dos próprios indígenas) por diferentes sociedades, arte, pandemia e literatura.

Além de ser alguém que escreve, que tem no romance a sua vocação, Carola estuda literatura e se propõe a desdobrá-la. A respeito desse assunto, ela reflete sobre conceitos, técnicas e faz perguntas. Por que separar a literatura em gêneros? Quais são as dificuldades de pensar um texto mais dinâmico, um “permatexto” como propõe a autora? Nessa concepção, as estruturas narrativas compreenderiam diversos gêneros (poesia, ficção, ficção científica, biografia, ensaio, etc.), capazes de se retroalimentarem, “formando, como as plantas, um sistema autossustentável”.

Em relação aos questionamentos que nos provocam durante o livro, um dos que mais me intrigou está no trecho em que Carola analisa os motivos do surrealismo não ter se consolidado na literatura da mesma forma como aconteceu nas artes visuais. Não haveria espaço para as loucuras do inconsciente na literatura? A resposta vem, como muito me agrada, em forma de mais perguntas, uma delas transcrevo aqui: “Por que na literatura, assim como em outras artes, a técnica não pode ser um saber já adquirido do qual, por isso mesmo, podemos nos afastar? ”.

Aos que se aventuram pela escrita (como é o meu caso), entendo o livro como um convite a desdobrar o fazer literário, observar as estruturas, os conceitos e refletir sobre tudo isso, em busca de algo essencial que é encontrar um caminho próprio. Mas é claro que podemos aplicar tais noções a outras áreas. Esses dias li a seguinte frase: “A prática não é apenas importante para a arte, ela é a própria arte”. Eu diria que refletir sobre o que se pratica (desdobrar as ações) também é um exercício que liberta a existência e nossos fazeres.

Existem muitos dragões, eu sei, e não é tão simples desdobrá-los porque, às vezes, estamos impregnados pelo desejo – nem sempre consciente – da zona de conforto. Em “O mundo desdobrável”, Carola Saavedra desfaz as dobras até encontrar novamente a folha que deu origem ao bicho. Tanto na arte quanto fora dela, algumas respostas só aparecem quando nos propomos a refazer o caminho, sem medo da criatura nova que, em algum momento, teremos nas mãos.

Larissa Campos é jornalista, escritora e podcaster. Reside em Cuiabá-MT. Para saber mais sobre o trabalho dela, acesse: www.laricampos.com

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