Da janela do avião, vejo a fumaça subindo aos céus. No chão, a terra está ressecada, os poucos pontos verdes estão tomados por focos de incêndio, facilmente identificáveis a olho nu pelos passageiros em um voo comercial. Chegando em Mato Grosso com destino à Cuiabá. A paisagem é desoladora. O Estado inteiro queima intensamente. O Pantanal já perdeu 15% do bioma e o Parque Estadual Encontro das Águas, reduto para animais, como a onça-pintada, foi devastado. Chapada dos Guimarães arde. A floresta amazônica arde. As chamas do fogo sobem e incendeiam tudo que se encontra pelo caminho.

Mato Grosso concentra três importantes biomas brasileiros: Cerrado, Pantanal e Amazônia. E todos queimam. Sentimos o resultado na pele, nos olhos, nos ossos, no corpo inteiro. Desço no aeroporto e o clima é desértico. Dias antes, eu chorava com as imagens em vídeo de uma onça-pintada sendo resgatada. O coração dilacerado. A impotência. A desolação. Quando a palavra não alcança a realidade, quando escrever, dizer, parece tão pouco, é porque a tragédia é tão imensa, tão inevitável e inescapável, que tudo o que se escreva ou diga é um retumbante nada, um vazio tão dilacerador quanto o fogo.

O fogo consome o Pantanal – Foto: José Medeiros

Aqui no Brasil profundo a relação com a natureza é diferente. Ela nos envolve. Percebemos a sua intrínseca conexão com a nossa vida, com a vida de todas as espécies, vivendo em um perfeito equilíbrio, com harmonia e sincronia de ciclos, essenciais uns aos outros. Para cada ação humana, uma reação direta no meio ambiente. Este é um lugar onde é possível chegar a redutos intocáveis em poucos minutos, verdadeiros santuários para animais e plantas. Houve um momento em que parecíamos entender a importância de estar neste local de natureza sagrada.

Encaro a tela em branco e penso: o que mais posso dizer que vocês já não saibam? Vocês não sabem que o presidente Jair Bolsonaro é diretamente responsável pelo aumento das queimadas e do desmatamento? Que a destruição institucionalizada é sua política de estado? Não é apenas o discurso, são todas as inações. A ausência avassaladora do Estado, não só o federal, mas municipal e estadual também. Vocês não sabem que não haverá mundo para os seus filhos? Netos? Para todos aqueles que vocês amam, inclusive vocês mesmos? Que o nosso egoísmo de hoje custa o futuro de todos, e não só o da humanidade? São as nossas escolhas, são as nossas responsabilidades. Não viemos ao mundo para desfrutar apenas, sem consequências, sem danos.

Edificamos o concreto, exaltamos deuses imaginários, separamos e dividimos pessoas, etiquetamos sonhos vendidos em forma de consumo frenético, inertes diante das telas que nos vigiam, anestesiados… como se não fossemos afetados por essas escolhas, pela destruição ao planeta. Derrubamos florestas para queimar a carne macia no churrasco. Devastamos ecossistemas inteiros em busca dos nossos prazeres infindáveis, insaciáveis. Acabamos com toda possibilidade de viver, inclusive a nossa.

A fumaça toma conta da paisagem – Foto: José Medeiros

Petrificados vemos o gelo derreter, a vida escorrendo pelos vãos do nosso transe coletivo. As notícias nos entorpecem. Olhamos para as palavras, para as telas, as bocas mexendo, o som esvaziado batendo no fundo da nossa mente. Viramos o rosto para o lado, deslizando o dedo pelo vidro em busca do próximo desejo, pede um ifood e finge que o fogo não consumirá a todos.

Já não sei o que dizer, não sei o que fazer, além de doar, contribuir, mobilizar, divulgar, conscientizar. Mas parece pouco, parece nada. Os animais morrendo. E por que nós não devemos morrer? Não merecemos viver. Não merecemos esse planeta. Não merecemos essa diversidade tão rica onde cada pequena forma de vida cumpre um papel imprescindível nessa cadeia de efeitos correlatos. Não merecemos nada disso.

Onça-pintada é resgatada com as patas queimadas – Foto: José Medeiros

Vamos para as igrejas nos punir pelos nossos pecados, mas não conseguimos deixar de lado as benesses e luxos que temos em detrimento de um bem comum, de uma existência conjunta. Até quando vamos fingir que está tudo sob controle?

Sinto que as palavras me escapam e pareço sufocar com a fumaça que inalo. Às seis horas da manhã, o cheiro e o ar denso revelam que não há como escapar, não há para onde fugir. Essa responsabilidade é coletiva e não individual. Não podemos apagar fogo com as nossas garrafinhas de água enquanto corporações e governos seguem destruindo o mundo que conhecemos. Precisamos de mudanças estruturais. Urgentes. Revolucionárias. Não estamos sós nesse planeta, por mais que nos sintamos assim na maioria das vezes. Respire fundo e você vai ter essa certeza: o fio da vida nos conecta a tudo.

*Agradecimento especial ao fotógrafo José Medeiros por disponibilizar as imagens utilizadas neste texto. 

Acesse para doar:

Ampara Animal 

Comitiva Esperança

Ecotropica

Ecoa – Ecologia e Ação

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

2 Comentários

  1. Texto triste, ecoa como um lamento profundo, a gritar impotências…Caramba, precisamos resistir a tudo isso, não dá para aceitar os silêncios aterrorizantes das autoridades. Que mundo é esse que vamos deixar como legado às futuras gerações. Que vergonha de fazer parte disso!

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