Da estrada, contemplo os carros que jazem sem vida, em um cemitério de automóveis, que por sinal é o nome de um bar na minha antiga rua, o lugar em que nos vimos pela última vez, ainda não tinha me dado conta de que tudo mudou e ao mesmo tempo nada mudou, aquela lembrança cristalizada de mais um amor que não aconteceu, como os veículos que perdem potência e morrem à beira do acostamento, eu sem velocidade fico a contemplar o que deixou de ser, as marcas do tempo em tudo, os sonhos que se desfazem e nunca encontram a luz do dia, a pintura que desbota e destoa do todo, a lataria que se reduz a nada, o tempo soberano que engole qualquer resquício de vida, um carro parado, pneus murchos, uma história que não será contada, sabe, tudo isso é só um pretexto para que eu imagine outros mundos, onde possa existir a possibilidade de que o destino seja algo totalmente diverso da realidade, a tinta branca do veículo que se apaga aos poucos, também foi em um carro branco que entrei naquela noite, quando você me buscou no aeroporto e nos encontramos pela primeira vez, é tão distante de mim e de quem sou hoje que mais se assemelha a um devaneio, não sei porque tudo isso me invade agora depois de tanto tempo, é só um cemitério de automóveis que brinca com a minha mente, naquele teatro lúdico regado a álcool, nossos corpos que se encostavam como se quisessem se agarrar à vã tentativa de permanecer, ainda que soubéssemos que a única certeza é o ruir do tempo, das coisas, das pessoas e amores e finais nada felizes, a única certeza é a entropia a acabar com a lataria, a tinta branca dos veículos que esperam o fim de tudo em fila, uma sequencia interminável de aço, ferro e borracha, que pacientemente aguardam as intempéries, que pouco a pouco vão dissolvendo essa existência de motores que não irão mais rugir com a força da sua combustão, quase como estrelas que nascem, explodem e morrem, não há um motivo para lembrar de você hoje, você é só mais uma lembrança triste da minha eterna impossibilidade de pertencer, você é só mais um cemitério de automóveis, que jaz sepultado no fim dos tempos.

Compartilhe!
Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here