Por Luiz Renato de Souza Pinto*

Começo a escrever esta crônica no dia 20 de setembro de 2017 (D.C). O Rio Grande do Sul está em festa. Mais um aniversário da revolução farroupilha. Folheio as páginas de Assim na Terra, romance do (falecido) autor gaúcho Luiz Sérgio Metz. Li o livro e conheci o autor no ano de 1993 ou 1994. Morei em Porto Alegre em 1996, quando já era falecido (em 20 de junho daquele ano). Estava à entrada do Bar do Beto, já no endereço novo na Avenida Venâncio Aires (meio do quarteirão), próximo ao Parque da Redenção, na capital gaúcha quando pude entabular uma conversa com ele. Isso voltou a acontecer mais uma ou duas vezes, não me recordo bem ao certo.

Não me recordo bem ao certo, mas na capital gaúcha, naquele ano li muito sobre o Rio Grande, a cultura gauchesca, na verdade fiz um mergulho na literatura rio-grandense para compreender esse espírito aventureiro e conquistador que vem dos pampas engolindo o Brasil, espaçando-se pelo território nacional, sobretudo a partir da era Vargas. E o livro de Metz sobra em meio à maioria dos escritos que pude percorrer. Agora me surpreendo quando, dentre outras citações, deparo-me com uma de seu romance no livro de poemas de Matheus Guménin Barreto, lançado recentemente a máquina de carregar nadas.

Carregar nadas; volta à minha cabeça o momento em que troquei duas ou três palavras com o escritor. À época eu viajava o país a vender poesias nos bares vestido de garçom, personagem que retiro do armário para empreender novas buscas por leitores, às vésperas de lançar novo livro de poemas, vinte e quatro anos depois de Cardápio Poético.

Cardápio poético: em busca da data exata de falecimento do Jacaré, alcunha pela qual era conhecido, deparo-me com um artigo escrito por Matheus sobre Assim na Terra, o que me fez compreender melhor as razões de seu encantamento com o romancista de um livro só (ele publicou outros dois, mas romances, foi o único). Como estamos no mês de setembro prefiro uma citação que introduza o leitor ao livro pelo começo, cujo primeiro tópico é PRIMAVERA…

Setembro respinga asas em nossos olhos, tudo está dentro de alguma coisa que não sabemos onde, os travesseiros se iluminam. Cheiro de voo no ar. Setembro põe polens na barba dos avós. Enluara os pentelhos das nossas mães. Muda de casa nossas irmãs. Os irmãos, sem paradeiro, olham fixo nossos pais, que fumam olorosos cachimbos às oito da noite lendo enciclopédias sobre vedas e obscuros fenícios que devolviam seus remos a Cartago (METZ, 2013, p. 9).

Primavera: estive em São Leopoldo em abril deste ano em um congresso sobre decolonialidade, na UNISSINOS, e passeando pelas livrarias da cidade (encontrei duas) adquiri uma segunda edição do livro de Metz. Vi-o, flertei com o livro e voltei no dia seguinte para buscá-lo; trazer para casa, para o meu convívio. Um primor, como todas as obras da recém-falecida editora Cosac Naify. Agora, inspirado pela leitura de Matheus, volto às páginas do Jacaré para saborear sua erudição mesclada com o linguajar pampeano, trinacional por excelência.

Por excelência, a vertigem provocada pelas construções do jovem poeta cuiabano traz certa simetria ao olhar despretensioso com o qual me dirijo paulatinamente às suas construções. Em meio aos andaimes cabralinos de sua poética, da qual ressurgem fantasmas e espectros variados da cultura ocidental, vou pescando intertextualidades febris que se enamoram discretamente de meus pontos de vista. Li o livro no próprio local do lançamento e metade cheio de primeiras impressões, esvaziei-me do contágio ao dialogar rapidamente com o poeta em face do imprevisível arrebatamento pela referência ao Metz.

Referência ao Metz: para fugir ao clichê de tecer comentários acerca da erudição do uspiano, recolho-me a uma referência que me pareceu implícita e que me lembrou os corredores da faculdade de letras da UFRJ, quando, no final dos anos 1980 pude comercializar livros usados em um mini sebo que funcionou por dois anos naquele local. Convivi com pessoas bastante interessantes, dentre as quais um jovem irrequieto de nome Carlito Azevedo, hoje poeta premiado e dono de erudição invejável para os padrões pequeno-burgueses da cultura nacional.

Cultura nacional: A poesia de Matheus me traz à luz essa referência. E talvez por aí compreenda a importância da referência de Assim na Terra em sua literatura.  Depois da GEOMETRIA QUANDO AINDA HÁ CHÃO, em que os silêncios copiados a lápis de sua poesia rastejam no terreno pantanoso das palavras; da CARTOGRAFIA PROVISÓRIA, em que os mapas da construção poética se misturam dos pés à cabeça com a gênese vocabular de uma escrita palimpsestica, há uma POESIA OUTRA VEZ EM PÂNICO & RETOMADA, de onde surge também a sua primavera, poema em prosa no melhor estilo baudelairiano, que se costura ao ramalhete de infusões com as quais o Jacaré tempera seu caldeirão mítico de referendos: Fellini, Eliot, Mallarmé, Bashô, Kafka, Goethe e Haroldo de Campos, como observa Jerônimo Teixeira, em fragmento decalcado à contracapa da edição da Cosac Naify. Decantam-se os versos de Guménin Barreto, à página 59 de seu belo livro:

pode um homem morrer na primavera? e o grito todo e toda a lágrima e o fio branco e a vida engasgada na garganta de quem fica? o fruto o fruto o fruto da vida engasgado na goela da mãe quando o fruto do seu ventre – cai? (é primavera é primavera é primavera caem os frutos? caem os frutos na primavera? caem caem os frutos?) (BARRETO, 2017, p.59).

Belo livro: vida longa para o autor de a máquina de carregar nadas. Que nos brinde com muitas primaveras e que a gente também viva o suficiente para abrigar em nosso peito o aroma indócil de uma poesia agressiva pela erudição premente e suave pela doçura incompreensível de palavras incontestes. Que há futuro nesse veio, não tenho dúvidas. Que venham outros livros deste faiscamento e que nós, pobres mortais, vivamos o suficiente para abrigar em nossos agadês externos e internos mais arabescos dessa pseudo pós-modernidade tardia que se liquefaz diariamente aos nossos olhos marejados de tanta luz e sombra. É primavera; e os que viverem mais verão!

 

*Luiz Renato de Souza Pinto é professor, ator, poeta e escritor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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