Naufrágio entre amigos: estavam todos no mesmo barco. Matheus, com seu violão, ensaiava as notas de uma trilha sonora que me parece atravessar o livro que tem ritmo muito próprio, uma escrita ágil que mistura erudição e movimento; quase um “trilher”. Como se habitassem a velha casa da Tia Nice.

O tio Alex botava a trilha pra rodar. Pareço ver o toca-discos em rotação. Os bolachões, um a um, se desfazendo de tanto tocar. Mas era o Pink Floyd quem reinava, espécie de quadro a quadro em que se pinta o movimento. Grafismos me parecem rondar a escrita semeando balões que circunscrevem o lugar do texto, contornam a diagramação sistemática.

Deca, o tio-avô e seu cavalo pressuroso. Pareço sentir a cadência na ponta de cada pata lançada ao solo, ouvir nesse galope o ritmo espaçado dos contos. Das doze narrativas curtas que se espaçam pelo livro. E vejo Clara; ao fim do túnel essa menina-moça-mulher. A que nasce de uma narrativa virtual e se desenha na ponta do nanquim em preto e branco antes de receber uma paleta de outras cores. Clara é esse outro, espécie de não eu.

Gabriel, o evadido. Aquele que some. E não volta. E vejo Bola, vejo Angelina e também Newtão. Todos desaparecidos, mas que revisitam cada narratário que se aventura pelo texto. Angelina é quem ressurge abençoando o irmão mais novo de quem a narra. Quem bate esquece, quem apanha nem sempre, aliás, quase nunca, eu diria.

Ana e João, a nadadora americana. No labirinto, espécie de dispensário antiquado, prateleira de inutilidades cotidianas repousam cada espectro de quem fora personagem até outro dia. “Penso no meu bisa, no meu avô, no meu pai, gerações de trabalhadores cujas almas, até hoje, devem estar vagando nos túneis”. (p. 162).

Eduardo Sabino, foto de Flávio Coelho

Eduardo Sabino faz de cada túnel uma cova. Lembro-me neste instante em que registro estas impressões de uma bela metáfora de quem sempre soube escrever bons contos: o grande mestre Dalton Trevisan. Os elefantes sempre souberam do peso de suas vidas. Quando se agrupam é para não deixar pedra sobre pedra sem a marca de seus passos que impressionam.

“Naufrágio entre amigos” é mais uma das pérolas publicadas pela Patuá. Vai aqui um salve para as editoras independentes que insistem na sobrevivência. Eu sou assinante e todo mês recebo poesia e prosa de boa qualidade. E você?

REFERÊNCIA

SABINO, Eduardo. Naufrágio entre amigos. São Paulo: Patuá, 2016.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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