Domingo, 11 de junho de 2017, 9h00.

Esta foi a data e o horário marcados para o início da demolição da Ilha da Banana no centro de Cuiabá. Chego e vejo a concentração de pessoas em frente aos prédios abandonados para acompanhar a ação. Meus olhos desviam da cena e repousam no vai e vem das pessoas em situação de rua que carregam suas vidas em malas ou enroladas em lençóis e atravessam a rua até o Morro da Luz. Decido ir até lá. Subo o lance de escadas e me deparo com um colchão e outros pertences espalhados: sinais da mudança forçada. Encontro quatro pessoas sentadas embaixo de uma árvore despreocupadamente dividindo um cachimbo, mesmo com a rua repleta de policiais.

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Foto Marianna Marimon

Me apresento e digo que sou jornalista, pergunto se algum deles pode falar comigo sobre a demolição da Ilha da Banana. Um rapaz se prontifica a conversar e se identifica como morador de rua. E me diz que mora ali há uns 5 ou 6 anos, mas que sempre soube que em algum momento teria que sair.

“Qualquer lugar que a gente for eles vão querer fechar. Mas fecha aqui e abre outro ali. Tem três meses que a gente sabe, ofereceram de ir para uma casa de apoio, mas quem quer ir? Vamos ficar no Morro até ter outro lugar para invadir”. Ele pergunta se precisa se identificar, eu digo que não, mas depois me fala seu nome e o sobrenome que inventou para si. Pergunta se pode fumar na minha frente, de boa, ele pede que eu tire uma foto sua.

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Foto Marianna Marimon

Acompanha enquanto anoto no meu bloco as suas palavras: “Essa demolição é pequena. Os viciados vão continuar aqui mesmo, o terminal do VLT é mentira, uma ilusão do governo”. Nisso uma mulher se aproxima de nós. Mora na Ilha há quatro anos. Gosta do que ele diz e me pede papel e caneta para escrever. “Vou voltar lá e falar isso aí que ele falou”. Acompanho com os olhos enquanto ela some dentro dos prédios com o papel na mão.

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Foto Marianna Marimon

Converso com outro morador da Ilha da Banana: “Em uma semana acaba a verba e para a demolição, é só para criar nome e imagem. Eles de terno e gravata podem roubar por que tem poder, vai nós roubar, apanha e é preso. Vai caçar lugar para dormir onde se tira nosso lugar? Derruba aqui, levanta lá. Cadê o VLT? O VLT tá lá no sol, no vento, na chuva, ninguém vê nada, ninguém fala nada. Vamo vazar para onde? Não adianta tirar daqui, vamos ficar no centro, ou vão matar? Só se prender todo mundo, mas o coração tá aqui, se prende nós volta. Só se for matar todo mundo então”.

“Sou ser humano também”, ele reafirma o óbvio – mas é preciso dizer por que tem consciência de que é invisível aos olhos da sociedade e do poder público. Mora no centro desde criança, mas vive na Ilha há sete anos quando saiu de casa para não dar desgosto para sua família. “Sempre tem um lugar, nunca vai acabar”.

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Foto Marianna Marimon

Essa invisibilidade é silenciadora. Seus rostos não são vistos, suas vozes não são ouvidas. A frase “eles são seres humanos também” acompanhou aquela manhã de domingo e não ouvi apenas na boca dos moradores da Ilha da Banana, mas de autoridades também. É preciso reafirmar o óbvio. É preciso dizer com palavras que as pessoas que ali residiam nos prédios abandonados são seres humanos também. Mas relegados ao papel da invisibilidade, da incapacidade, mesmo que suas falas tenham sido as mais conscientes que chegaram aos meus ouvidos naquele dia. O governador Pedro Taques, o prefeito Emanuel Pinheiro, o secretário de cidades Wilson Santos acompanharam o ato oficial com a máquina a derrubar o concreto enquanto posavam para as selfies.

Depois da ação desastrosa do prefeito de São Paulo João Dória na cracolândia, os gestores aqui garantiram que não haverá internação compulsória, confirmaram possuir mais vagas nos centros de acolhimento do que o número de moradores ali: mais de 60 pessoas ocupavam os prédios na Ilha da Banana. O primeiro prédio não será derrubado até que seja encontrada uma alternativa de moradia. O prazo final é de 30 dias ocupando aquele espaço.

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Foto Marianna Marimon
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Foto Marianna Marimon

Ali na frente da imprensa, das câmeras, dos flashes, os gestores se comprometeram a participar do processo de escuta, a dar dignidade para a comunidade que ali residia. Antes mesmo de marcarem a data para demolição estava lendo a pesquisa de doutorado da Eliete Borges sobre a população em situação de rua que habita a Ilha. É um trabalho de campo que mapeia a relação daquelas pessoas com o local, onde criaram possibilidades de vida, de afeto, de educação. É uma população ativa e rebelde, consciente, basta parar um segundo para ouvi-los, romper a barreira de invisibilidade e escutar. Sobre esta pesquisa referente àquela população irei me aprofundar em outro texto. Mas é preciso voltar a dizer: não podemos criminalizar o usuário enquanto aposta-se no modelo falido de guerra às drogas, este é um problema de saúde pública. Falo mais sobre isso aqui e aqui.

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Foto Marianna Marimon

Enquanto apressa-se em desalojar aquelas pessoas dali, a justiça continua a embargar as tentativas de retomada da obra e o governo articula aprovar um empréstimo de mais de R$900 milhões para dar continuidade ao Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). O monumento à corrupção que já drenou dos cofres públicos R$1,47 bi e deixou a cidade rasgada, sangrando com suas cicatrizes, como uma lembrança diária de quanto o povo é lesado e ludibriado. Sem saúde, sem assistência, sem políticas públicas efetivas. Mas é preciso passar com os trilhos mesmo que seja sobre vidas.

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Foto Marianna Marimon
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Foto Marianna Marimon

O Fórum Estadual de População em Situação de Rua lançou um manifesto contra a retirada daquela população e realizou uma reunião nesta segunda-feira, 12 de junho para iniciar o processo de escuta, resta saber se essas vozes serão ouvidas, silenciadas ou apenas ecoarão em ouvidos fechados.

De tudo o que presenciei naquele domingo, o que me fez pensar mais foi a necessidade de várias vozes em reafirmar a humanidade daquela população. É quem vive as ruas dia e noite que conhece a própria invisibilidade diante dos outros. São essas pessoas que sentem na pele a miséria, a indiferença, a falta de empatia. E só fechar os olhos não muda a realidade.

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Foto Marianna Marimon

Manifesto Contra a Retirada da População em Situação de Rua da Ilha do Bananal, Casarão, Ilha da Banana, Centro de Cuiabá.

A região conhecida como Ilha do Bananal, Ilha da Banana ou Casarão, no Centro Histórico da Cidade de Cuiabá, entre o Beco do Candeeiro e o Morro da Luz, abriga há alguns anos uma comunidade em situação de rua.

O lugar pertence a uma comunidade que se auto organiza e resiste como população pobre que conseguiu o abrigo dos prédios desapropriados pelo Estado em função da passagem do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT).

Desde que foram descobertas as fraudes e desvios no processo de implantação do VLT e que este foi embargado, esta população vem sendo alvo do poder Estatal que visa sob a justificativa da retomada das obras, a sua retirada.

Hoje o Fórum População em Situação de Rua, vem se manifestar contra essa ação que levará ao extermínio dessa população. Sua condição enquanto comunidade está assentada sobre o território ali encarnado em suas dimensões de abrigo, casa e de refúgio.

O Fórum assim se pronuncia contrário à retirada da população em situação de rua de sua comunidade na Ilha do Bananal, também repudia toda ação de repressão contra o povo da rua e ainda se pronuncia como parceiro na propositura de ações que visem minorar as condições de sofrimento da população em situação de rua que habitem a Ilha do Bananal.

Em luta com o povo da rua todos assinamos.

Fórum Estadual da População em Situação de Rua.

Cuiabá, 09 de Junho de 2017.

3 Comentários

  1. a cegueira e a falta de sintonia da classe política com a população carente das cidades é abominável, um debate verdadeiro nunca é encarado de frente, a invisibilidade dessa gente é muito triste e revoltante. Parabéns pela matéria corajosa!

  2. Muito bom o texto. Mas não concordo com o posicionamento do fórum. Se eles ali estão, no “território ali encarnado” foi justamente porque o Governo retirou as empresas que ali estavam. Esses moradores em situação de rua estavam em outras casas do centro antigo e do morro da luz. Não acredito que vá levar ao extermínio nenhum. Não acho que a melhor solução é deixá-los lá. Isso sim é apoiar a condição de invisibilidade. Acredito que o melhor destino é que essas pessoas sejam direcionadas à casas de apoio para que possam ser reinseridas na sociedade. Não todos, mas grande parte desses moradores cometiam delitos no centro. Creio ser uma decisão acertada transformar aquilo num espaço que a população possa ocupar e os moradores da região possam se sentir em paz e seguros. Quantos a esses moradores em situação de rua, sim é preciso ouvi-los, mas mais que isso, retirá-los da condição de dependentes químicos.

  3. Para além dessa matéria necessária, o site está muito interessante de acompanhar. Forças e honestidades aos/as colaboradores/as. Saravá!

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