Por Glauber Lauria*

A choperia como que quedou-se ante a aparição daquele animal raro. Não houve criança, jovem enamorado, velha matrona ou míope ancião que não assestou surpreso seus olhos diante de ser tão carregado de simbolismos cruéis. A segurança, determinação e ousadia com que atravessou o salão parecia fazer supor que seria precedida por um exército de ferozes Valquírias, que atrás de si veríamos surgirem desnudas selvagens Amazonas de cujo seio ainda sangrava a amputação. Não sorria, não olhava em redor, não havia complacência nem piedade em seu andar de fera. O estalar de seus saltos agulha parecia querer partir o chão em que pisava, era de imaginar-se fragmentos desprendendo-se ao contato altivo dos sapatos em ritmo soberano e lento. Dirigindo-se diretamente ao balcão nele postou-se fazendo com que os garçons diminuíssem a sua volta. Longas negras brilhantes botas envolviam pernas esguias, a curta saia acima das coxas fazia com que o olhar resvalasse ávido por aquele palmo exposto de lívida carne marmórea, era uma crueldade estudada não direcionada a sexo ou faixa etária, era como um conceito em uma passarela em Milão, uma roupa costurada no corpo da mais nova diva a quem o mundo se rendia. Um corpete igualmente negro e rendado se fechava em tênues e sugestivas transparências num pescoço longo, emoldurado por delicadezas em cassa que davam a sua suspeita antiguidade todo um tom original. Curta jaqueta de corte simples lhe protegia braços e costas, os cabelos, presos ao alto, desciam em arabescos a competir em brilho com o material luzidio das botas com as quais quase encontravam-se. A renda da gola no pescoço, os cabelos sistematicamente presos, combinavam a sisudez pálida de protestantes da Nova Inglaterra a olhos luminosos, maquilados com um negro egípcio, dando ao todo do rosto uma indefinição hierática, que despertava antes o receio que a admiração. Entregaram-lhe o maior caneco da casa, ela o sorveu em dois goles, trouxeram-lhe outro e ela virou-se para sua audiência, deixando os dois braços deslizarem paralelos sobre o balcão, dir-se-ia uma simétrica cruz espiando o castigo que seria outorgado a cada um dos presentes; ela passeou seu pétreo olhar por cada rosto, e foi com o mais terrível dos mutismos que cada um sucumbiu angustiado àquele olhar que a todos julgou indignos de pena. Fitando algo que jamais nossos olhos vislumbrariam entornou o segundo copo, postou-o a seu lado, girou o corpo em eixo, dirigiu-se ao caixa e como havia adentrado o recinto partiu, silenciosa e ferina, desaparecendo naquele noturno domingo de fina e silenciosa chuva.

 

*Glauber Lauria é poeta mato-grossense e mora no mundo. 
Nascido em 1982, publicou de forma independente o livro Jardim das Rosas em Caos, 
já participou de três antologias em diferentes estados brasileiros e possui poemas 
publicados nos seguintes periódicos Sina, Acre, Fagulha, Grifo, Expresso Araguaia 
e A Semana.

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