Crescemos ouvindo histórias, “causos”, poesia. Quem não passa por isso, talvez não cresça o suficiente para se tornar mais gente, cidadão. Um país sem histórias, sem registros, não se torna uma nação. Mas, deixando de lado os clichês, o que importa é a valorização da formação continuada pela qual o indivíduo passa ao longo da vida. E dela se faz presente, quase que invariavelmente, algum tipo de literatura. Não falo de temas da moda, de conteúdos dogmáticos, de reproduções estéreis de uma cultura massiva, e, sim, de aspectos marcantes de uma libertação funcional que torna cada corpo um corpo crítico, político, nessa massa amorfa que busca nos unificar.

Quando a palavra é literária, a menor unidade de significação é a expressão individual, mesmo que o inconsciente coletivo de uma comunidade se faça presente, metonimicamente, naquele vetor. O que seria da obra de um Chico Buarque sem os mecanismos repressores do golpe de 1964?

Por meio da interpretação estática da alegoria, o homem moderno era remetido ao estado de criatura, para ver sua subjetividade abstrata recolhida e abolida na ordem da Criação. Aqui, a interpretação dinâmica das imagens do mundo primitivo, percebidas e nomeadas em suas verdades, completa uma operação revolucionária sobre o esquecimento em que se funda o progresso cego. Mas o mundo do mito é, ele próprio, dinamizado por meio da imagem da tempestade. Ao mesmo tempo, o trabalho de projeção encontra-se engajado na história como rememoração ativa com função revolucionária, como reapropriação de nosso corpo estrangeiro em que o esquecimento faz de nós exilados (ROCHILITZ, 2003, p.182-3).

Há de vir ainda a bonança. E parte dela é subjacente à produção cultural de um mundo para o qual boa parte da população dá as costas. Quando a arte, falo agora de uma arte livre de rótulos, não tem espaço em museus, casa de espetáculos, cinemas, livros, ela busca sua significação em logradouros públicos. A rua é um espaço por excelência. Onde o grafite completa o cinza das manhãs nubladas, o “slam” acolhe os poetas que performatizam seus matizes ideológicos, os artistas circenses evoluem em malabarismos para permanecer vivos.

A rua se torna moradia para o flâneur que, entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a escrivaninha onde apoia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terrações dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente (BENJAMIN, 1994, p. 35).

É nesse cenário que a poesia de Caio Ribeiro se manifesta. Na feira do Porto, nas lembranças que o poeta tem do valor da literatura em sua vida. Dos espaços em que tira a população para dançar. Sim, o poeta tira o leitor para dançar com sua escrita. Esta jovem promessa da literatura de nosso estado cultiva flores raras em sua vivência. Alzira Espíndola e Alice Ruiz são desse jardim em que sua linguagem é permanentemente renovada.

Luciene Carvalho tem no Porto sua morada. Ela, cultuada pela Universidade do Estado de Mato Grosso, leitura obrigatória do vestibular. Ela que colocou na ordem do dia a negritude em forma de poesia. Seu livro “Dona” tem avançado rumo ao desconhecido futuro da poesia brasileira. A voz de negros e negras, com seu lirismo ácido, e uma pegada forte de periferia. Luciene traz de seu porto seguro um trovadorismo ribeirinho, em pleno século XXI. Ela, a dona do verso, e boa de prosa.

Também com raízes às margens do rio, Ivens Scaff, cuiabano até no nome, sobrevoa essa paisagem “cult” com uma verve pantaneira sofisticada. Conhecedor das águas profundas em que se banha o verso, viaja também nas “Asas de Ícaro”, sem esquecer-se, decerto, de que uma poética não se faz de cera tampando os ouvidos quando o assunto é sério. Um pedaço do pantanal parece desprender-se em bloco de sua poética. Ivens traz a simplicidade de um vocabulário em que cenários da cuiabania dão o tom onipresente do afeto.

Quando a palavra é literária, sobram esforços para a compreensão da escrita. Mesmo com tanta crise. Aclyse de Matos, literato da comunicação, avatar das idiossincrasias que recobrem o saber literário, brinca com os ritmos contemporâneos. Sua escrita não tem o livro como suporte único, nem por isso o despreza. Aclyse traz sempre na ponta da língua uma palavra carregada de sabores; e não se esquece das raízes de uma Cuiabá distante das trincheiras, viadutos, perfumarias do capital.

Marta Cocco, poeta que foca na formação de professores e no fomento à leitura infantil seu trabalho atual, também tem algo a dizer; Eduardo Mahon, criminalista que estuda a literatura, coloca sua escrita a serviço de outras petições; Eduardo Ferreira, mestre do underground, figura lendária do cenário roqueiro da capital, videomaker, jornalista, poeta, artista plástico, dentre outras habilidades, continua fazendo suas leituras de fibra ótica nessa arte em constante desalinho, passeando com propriedade em múltiplas linguagens.

Lorenzo Falcão e Marília Beatriz mesclam tradição, amor pela arte e mensagens de que tempos melhores virão. O que fazem com a transferência para mais jovens de aspectos solidificadores de uma cultura em estado de impermanência. Viva o rolê literário; todos os tours pelo universo literário; viva os álbuns de lembranças que recuperam a memória esquecida nas prateleiras de um mercado imaginário.

Quando a palavra é literária tudo parece valer a pequena. E nem é uma questão de alma, mas de arma, ferramenta para a construção de algo maior. Foi com esse espírito que enxerguei a jornada empreendida pela TV Assembleia ao transmitir os programas que imortalizaram o feitio da escrita em nossas paragens. Nesse mar de informações, curti a onda, vaguei pela urbe que cresce, embora deixe a literatura ilhada. Há portos seguros para se fugir da vazante, para superar os momentos de seca quando os afluentes parecem desnutrir-se banhando de poeira a lombada dos livros que ainda fazem água por aí.

 

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte. Bauru-SP: EDUSC, 2003.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Comentário

  1. Que maravilha ! Gosto de tudo que vc faz Luiz Renato. Vc mais do que muitos sabe das coisas da vida e das dores da palavra literária . Que bom encontrar este espaço numa segunda feira. Evoé Baco/Luiz Renato
    POSTE POESIA!

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