É notório o já tradicional descaso com a cultura por parte do poder público. Escrever sobre isso é como chover no molhado. Mas nem por isso devemos nos furtar do nosso dever de alertar e criticar quando atitudes arbitrárias são tomadas, desconsiderando todo o contexto histórico, social, cultural e artístico.

“Morrer em Cuiabá é morrer duas vezes porque é um silêncio medonho”. Essas palavras foram proferidas por Estevão de Mendonça, reconhecido historiador e escritor de Mato Grosso. É a síntese da total ignorância de uma terra sobre o fruto que essa própria terra produz. Conheci essa frase por meio de Wlademir Dias-Pino, no primeiro encontro que tivemos em dezembro de 2013. Aquele momento específico marca o início de uma trajetória afetiva que percorri ao pesquisar a obra deste que é considerado um dos maiores nomes da poesia visual do mundo. Percursor. Vanguardista. Poeta da visualidade radical. Dias-Pino. Nosso grande Wlade.

Wlademir Dias-Pino em entrevista para Marianna Marimon, na casa de Regina Pouchain, no Rio de Janeiro, em outubro de 2017,

É um nome que representa a imensidão da arte brasileira, que iniciou movimentos de arte de vanguarda em momentos de exceção, deixando um rastro importante na história do país, interligando os estados ditos periféricos com a produção nacional e internacional. Sua grandiosidade é revisitada em livros, artigos acadêmicos, reportagens, entrevistas, exposições. E em sua espiral infinita de arte, Wlademir persiste. Vive. Pulsa.

Wlademir Dias-Pino – Foto Ana Branco

Trabalhou incansavelmente até os 91 anos. Fez da arte sua vida. Dedicou-se todos os dias a perseguir ideias e conceitos que se materializaram em diferentes suportes, cores e imagens para traduzir o que guardava dentro de si. Antes de fechar os olhos e se tornar poesia, Dias-Pino preparava o conteúdo para uma exposição inédita no Centre Georges Pompidou em Paris. Basta um Google para perceber que isso não é pouca coisa. Pelo contrário. É o devido reconhecimento e redenção de um artista que passou grande parte da sua vida no anonimato e longe dos holofotes, dedicado exclusivamente à sua criação incessante. (Ah, detalhe, e ao lado de artistas mundiais como Marcel Duchamp e Picasso).

Essa introdução é para situar a importância de Wlademir não só no Brasil, mas no mundo. A ligação do poeta com Cuiabá é praticamente umbilical. Chegou na capital de Mato Grosso ainda criança em 1936, após a família deixar o Rio de Janeiro por perseguição política ao pai dele, Luciano. Assim que se instalaram, seu pai iniciou o tradicional ofício da família: a gráfica. É esse universo que expande sua criatividade ao brincar com tipos como se fossem soldadinhos de chumbo e recortar formas geométricas dos tecidos da mãe Laura, bem como palavras que o pai escrevia no jornal. Um ambiente propício a uma mente inquieta e que contribui para construir uma subjetividade que via poesia em qualquer lugar, imagem, objeto, superfície, pessoa. Para além da palavra. Depois, vivenciando a Cuiabá ao lado de Silva Freire, outro saudoso poeta, Wlademir e o parceiro de poesia encabeçam a criação do movimento intenvisita. O intensivismo, cujo conceito era a imagem na poesia como vocábulo, abriu caminho para outro movimento de arte de vanguarda que envolveu o poeta, o poema//processo. Trato mais profundamente sobre esses movimentos nesse texto aqui.

Exposição “O poema infinito” de Wlademir Dias-Pino – Foto: João Fincatto

A relação profunda do poeta com a cidade motivou a criação de diversas obras específicas sobre Cuiabá. Wlademir dizia que Cuiabá não deveria lamentar as brenhas da solidão, pois era isso que a fazia única. Sonhava com uma campanha ambiental em que Cuiabá estivesse no coração, no centro, já que é o ponto geodésico da América do Sul. Tinha um desejo latente de ver o devido reconhecimento ao solo e ao povo cuiabano. Penso cá com meus botões, se as folhas da laranjeira onde foram depositadas as suas cinzas se balançaram com revolta quando a Prefeitura de Cuiabá retirou a sua escultura “Árvore de todos os povos” da Praça 8 de Abril, para colocar no lugar um verdadeiro culto à cafonice.

Escultura-poema “Árvore de todos os povos” de Wlademir Dias-Pino. Foto: Reprodução

É impressionante como a ignorância e o descaso andam lado a lado no que concerne à cultura e à arte no Brasil. Não só retiraram a escultura de Wlademir Dias-Pino como apagaram o painel pintado pelo nosso célebre Adir Sodré – outro grande artista de nossa terra -, deixando o espaço sem qualquer referência artística de Mato Grosso.

Aline Figueiredo, conceituada crítica de arte, assim discorreu sobre a decisão da Prefeitura: “É um absurdo ridículo! Uma cidade que comemora 300 anos, troca uma obra de arte contemporânea – realizada por um artista internacional e que tem muito a ver com a cultura cuiabana – por um trabalho medíocre e de extremo mau gosto! É um equívoco pago com dinheiro público. Após 300 anos, Cuiabá continua na idade da pedra. Queremos Wlademir Dias-Pino de volta a Praça 8 de Abril, em frente ao Choppão, onde ele e o poeta Silva Freire curtiam o processo de seus poemas”, afirma.

Adir Sodré, artista mato-grossense

Cobrando a recolocação da obra na Praça, representantes da Casa Silva Freire participaram de reunião com o secretário de Cultura de Cuiabá, Francisco Vuolo, que se comprometeu a resolver a questão até o dia 20/01. Conforme notícias oficiosas, o próprio prefeito, Emanuel Pinheiro, está preocupado em resolver a celeuma. Contudo, corre nos bastidores a informação de que o secretário de Serviços Urbano, José Roberto Stopa segue irredutível. A depender do secretário, a obra de Wlademir permanece trancafiada sabe-se lá em qual buraco da Prefeitura. Chega a ser assustadora conduta deste tipo vinda de um gestor público e me remete imediatamente a amarga profecia de Estevão de Mendonça: “Morrer em Cuiabá é morrer duas vezes porque é um silêncio medonho”.

“Pensar esta praça enquanto um território simbólico demarcado a partir das referências culturais sem que esteja associada a uma determinada gestão municipal, sendo compreendida como um campo de pertencimento cultural de todos os povos que habitaram e habitam este território. Um lugar que deve ser cuidado por guardar as marcas identitárias da cuiabania (processo cultural e histórico do Vale do Rio Cuiabá), estando para além dos trezentos anos como marca e gestão administrativa, mas que precisa ser pensado no fluxo da história, com responsabilidade histórica. O tempo será testemunha do quanto todos os gestores e a sociedade irão conseguir cuidar dos valores de nossas ancestralidades”, diz trecho da nota técnica assinada pela diretora geral da Casa Silva Freire, Larissa Silva Freire Spinelli.

No ofício encaminhado às Secretarias de Cultura e de Serviços Urbanos, a Casa Silva Freire recomenda que a Prefeitura informe oficialmente o destino da escultura-poema, se comprometendo a reinstalá-la no mesmo lugar em que originalmente se encontrava quando da sua instalação em 2008; e que convide o artista Adir Sodré a repintar o mural de sua autoria que fora apagado no painel do coreto; refaça as homenagens aos primeiros taxistas da cidade, em especial o da Praça 8 de Abril que leva o nome de Edegar Curvo; instale uma placa denominativa no coreto edificado na Praça com o nome Poeta Benedito Sant’Ana da Silva Freire, conforme Lei Municipal 5219/2009; e lance concurso público para elaboração de projeto arquitetônico para a praça, tomando como base o projeto da Praça Cívica do Estado de Mato Grosso, escrito por Wlademir, Célio da Cunha e Silva Freire.

Já eu espero realmente que a Prefeitura se retrate e corrija esse equívoco esdrúxulo – se é que podemos chamar isso de equívoco. Pois de uma coisa tenho certeza: Não encontrará abrigo em nossas gargantas o silêncio medonho.

5 Comentários

  1. As obras realizadas nas praças de Cuiabá durante o último mandato tem sido desastrosas. Retirada da arborização e de canteiros, que além do efeito paisagístico permitiam o escoamento de água das chuvas; pavimentação só em cimento, que além de feia absorve muito o calor; e construção de pontos de ônibus medonhos que as descaracterizaram. Sem sombra pra que possamos caminhar ou nos sentar, sem referências a nossa cultura ou mesmo algo bonito para admirar, qual a função delas?

  2. Infelizmente estamos acumulando exemplos deste descaso.

    Me pergunto também das Três Marias.
    Antes ficavam no contornl em frente à Igreja São Judas na Coronel Escolastico. A base cedeu, a escultura foi retirada. Um tempo depois apareceu pintada na rotatória da rodoviária. Pouco tempo atrás foi substituída por uma peça dos 300 anos.

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