sei que ainda somos o celeiro do mundo, nossa tecnologia e ciência não conseguiriam bater os países desenvolvidos. a nós cabe a tarefa de alimentar as bocas não mortas de fome. essa e outras conclusões eu tirei analisando os dados que chegam até mim sobre abastecimento de alimentos… não produzimos mais verduras como antes, ou se produzimos, não chegam até nós… disponibilizam uma cesta semanal por campo de acesso, de acordo com o número de habitantes. assim recebemos o nosso principal alimento: uma ração humana… creio que feita de soja, o gosto é parecido, e também porque nossas plantações hoje se restringem a arroz, milho, feijão e claro… soja. a maioria é exportada, e o que sobra é consumido internamente, por isso nem sempre sabemos se vamos contar com arroz ou feijão. são alimentos que temos racionado ao máximo. também é importante economizar a comida, pois já ficamos algumas semanas sem receber novas cestas. penso no último dia que comi laranjas, a boca lambuzada feito criança que descobre o doce da fruta. parece outra vida, outro mundo. também não recebemos sal, açúcar ou temperos. condimentos são artigos de luxo. mas temos uma quantidade absurda de produtos ultra industrializados, apesar de sabermos há um tempo que não se tratam de alimento, de comida de verdade… e mais que nunca a saúde é importante… ninguém quer descobrir para onde levam os doentes…

eu costumo pensar muito no jogo sujo do poder, na geopolítica, e como essas forças se moviam e forjavam nossas vidas, totalmente alheias aos nossos quereres… de certa forma, já não tínhamos muita liberdade, mas agíamos como se tivéssemos algum controle sobre os acontecimentos do destino. reflito sobre o que estava para acontecer naquele ano. era ano de eleição nos estados unidos, e aquele que se recandidatava já era conhecido por suas artimanhas de mexer as peças nos tabuleiros sem se importar com direitos… mais teorias da conspiração para passar o tempo desse dia sem fim que nunca acaba.

temos poucas informações, algumas vezes os drones fazem anúncios com suas vozes robóticas automatizadas. nada de muita importância, mas como lembretes de que precisamos ficar dentro de nossos campos de acesso. não temos acesso à internet, mas temos uma programação cotidiana de filmes e séries, que são transmitidos remotamente em nossos aparelhos de televisão. não escolhemos e não temos como mudar de canal. é esse dito governo que seleciona o que assistiremos. os filmes geralmente são comédias enlatadas, prontas para consumo imediato.. algo que não nos permita o pensamento crítico, tampouco a reflexão, é meramente uma válvula de escape, uma maneira de nos manter contidos e livres das tentações de buscar uma forma para voltar à nossa vida anterior. eu ainda espero o dia em que eles virão tomar meus livros, mas creio, que a orientação é evitar ao máximo o contato entre seres humanos, por isso, fomos presenteados com a possibilidade de manter o que temos em nossos campos de acesso.

algumas notícias antecipavam o desenrolar dos fatos. diversos países começaram a agir como verdadeiros piratas desbravando os sete mares. os saques marítimos e aéreos visavam as preciosas unidades de respiradores, que decidiam o destino de todos os seres humanos. esse fator decisivo era conhecido desde o início da crise, mas as perseguições surpreenderam a todos. quando ainda havia leis, as aquisições dos governos ficavam presas em alfândegas, com as amarras invisíveis da burocracia a determinar o que entra e o que sai – ou quem vive e morre. a pirataria moderna parecia ter surgido de um enredo, de um roteiro cinematográfico. as imagens ao redor do mundo mostravam os cargueiros enormes, as armas potentes, os caças sobrevoando os céus… todo o inventário do poder usado para intimidar os oponentes. é claro que nesse jogo de vida e morte, muitos se atiraram sem pensar duas vezes… afinal, se antes o dinheiro era o que mandava, agora as forças bélica, industrial e tecnológica ditavam as regras. dinheiro é meramente papel e um papel que não serve nem para limpar bundas.

o que é preciso imaginar, agora, é o tamanho do caos que reinava naquele momento, antes de sermos enclausurados em nossos campos de acesso. não lidávamos apenas com o vírus mutante e potencialmente mortal, mas, uma luta insurgia contra o ódio, contra o preconceito, o racismo, e o fascismo. o projeto dos governantes era claro: necropolítica e higienização. quanto mais pessoas vulneráveis morressem, melhor para aqueles que estavam no poder. as pessoas não morriam só da doença, morriam todos os dias pelas mãos das forças oficiais de segurança. quando a polícia entrava na periferia era bala “perdida”, afinal, não interessava se acertasse uma criança ou um traficante, o que importava era morrer gente. tinha que morrer gente. menos dinheiro para gastar com esse bando de vagabundo. sic. eu sigo me questionando sobre o modo como estávamos levando nossas vidas, o que fazíamos com a nossa dita liberdade, como lutávamos ou nos esquivávamos para o silêncio sepulcral das feridas que ainda sangravam. cada dia, uma nova cascata de notícias perturbadoras sobre o rumo das coisas… eu imaginava uma guerra civil, e não um mundo orwelliano. nós menosprezamos a capacidade de controle e vigília da sociedade que criamos, da sociedade da informação.. e foi precisamente isso que nos venceu.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

Comentário

  1. Comecei a ler esse texto pela parte IV, estou procurando avidamente as outras partes, incrível como seu texto me pegou, gostei demais da conta!

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