Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido (CALVINO, 2003, p. 130).

Tenho refletido bastante nos últimos anos acerca do papel da crítica literária no processo de aquisição de leitura, além, é claro, de suas funções no campo da arte literária. Muitas vezes constroem-se torres de marfim em torno de estilos, autores e obras, que não se sustentam quando se estabelecem zonas de conflito entre valores estéticos, históricos, hermenêuticos. Sobretudo quando tocamos no campo das preferências, tendências, modismos, aspectos dos quais a cultura acadêmica nem sempre se aparta, já que a construção de cânones continua respeitando os mesmos princípios desde o século XIX.

Ao visitar obras contemporâneas temos a oportunidade de reencontrar temas clássicos, abordagens experimentais e confrontar o domínio estilístico deste ou daquele autor na busca por leituras fluidas que nos proporcionem prazer, além de transmitir histórias sensíveis do universo humano, sobre-humano, independente do estilo. Hoje quero falar de alguns autores que ouso misturar em um único texto sob o guarda-chuva do autoritarismo, do pertencimento e da ausência de positividade que consiste em outro lado dessa mesma moeda que valora a existência de cada um de nós. “MAIO – É diante de pais nessa condição inominável de terem filhos desaparecidos que Ângela está prestes a manifestar sua renúncia: a decisão de ter encerrado por conta própria a espera e a busca pelo seu filho, que desaparecera quando criança havia mais de trinta anos” (GALLO, 2015, p. 11).

Rebentar, de Rafael Gallo

Rafael Gallo traz em seu primeiro romance, “Rebentar” uma discussão importante sobre o desaparecimento de crianças, assunto que reporta à minha pré-adolescência, quando via na televisão (sem compreender direito) reportagens sobre o menino Carlinhos, que ocupou as manchetes televisivas por muito tempo. Aquilo soou bizarro e até hoje me vem à mente quando me deparo com equivalentes. O romance propõe esse mergulho no vazio de uma família que definha por três décadas amarrada ao fantasma do desaparecimento, por um lado, e atingida em cheio pela necessidade de ter esperança de um dia encontrar o filho. “Um filho desaparecido é um filho que morre todos os dias” (idem, p. 26).

Rafael Gallo, escritor

Felipe é o nome do garoto de cinco anos de idade, contemporâneo de sua prima Isa, filha de Regina, irmã de Ângela, sua mãe. Alguns paralelismos são utilizados pelo autor para posicionar o leitor nas dobras narrativas. “Ângela curva a cabeça para baixo, derramando o olhar no fundo da xícara ainda vazia em suas mãos” (idem, p. 104). Quatro páginas após este fragmento encontramos: “Isa curva o rosto para baixo, derramando o olhar sobre a própria barriga, feliz por perceber que o rebento guardado ali poderá crescer em um ambiente dissipado das sombras que sempre a cercaram” (idem, p. 108).

O olhar cabisbaixo de uma mãe que perde o filho e o de uma futura mãe que aguarda a chegada do seu traz um contraste que se aprofunda a cada descrição desses dois estados de espírito que dialogam. Algumas passagens dão conta de contextualizar a escrita para que o leitor sinta a amarração do tempo, consiga compreender o peso da espera por um luto que não vem, mas que se instala fundo em seus corações de pai e mãe. “As guerras das últimas décadas, a chegada do homem à Lua, a ditadura militar, tudo isso poderia apenas ser parte de um universo de fábulas, que não pertencia à vivência daqueles meninos e meninas” (idem, p. 276).

Micheliny Verunschk

Em sua trilogia infernal, Micheliny Verunschk narra em três tempos aspectos de outro tipo de desaparecimento. Aqui o universo se restringe às estripulias do regime militar que assolou a liberdade de cidadãos brasileiros promovendo uma sangria no coração da liberdade de expressão ao longo dos anos 60, 70, até meados de 1980. Um pai que é acusado de matar a esposa, mãe de suas duas filhas, por envolvimento com a luta armada, contrariando a sua ideologia repressora. “Papi chama o penico de capitão, e a gente acha engraçado porque é engraçado, né, pensar em mijar em cima da autoridade” (VERUNSCHK, 2016, p. 26).

A convivência autoritária com um pai de feições fascistas faz de suas filhas arautos de uma revolução silenciosa, da qual podemos extirpar a título de biópsias literárias detalhes que podem até passar despercebidos de leitores pouco atentos ao registro literário. “Os terroristas são armas humanas que os subversivos usam quando suas ideias não são acatadas. Foi isso que papai ensinou pra gente” (idem, p. 44). O delegado criara as filhas para serem reprodutoras da submissão feminina, tão em voga até outro dia. “Uma menina precisa de outra coisa além da novela das seis” (idem, p. 67). E a vigilância era exercida o tempo todo, em nome da moral e dos bons costumes, naturalmente. “Era natural que eu, a filha do delegado, tivesse mil olhos pousados cotidianamente sobre mim” (VERUNSCHK, 2017, p. 93).

Aqui, no coração do inferno, de Micheliny Verunschk

A costura entre texto e contexto é minuciosa, sem que a literatura se contamine por ranços ideológicos que desrespeitem a capacidade do leitor em inferir o que se faz presente no discurso. “Quando, décadas depois, entreguei os documentos de desaparecidos políticos à Comissão da Verdade, entreguei também papai e seu passado sujo, e embora os crimes que ele cometera não tenham sido devidamente punidos, nem o possível assassinato de minha mãe, de certo modo senti que estava fazendo justiça” (idem, p. 121).

No terceiro volume o leitor começa a perceber a relação doentia pela qual a mãe da narradora se envolve. A compreensão de que o amor anestesia incompatibilidades de vários naipes se faz determinante. “Tesão, não amor, esse obstáculo que coloca as pessoas em estado de caça a ser abatida” (VERUNSCHK, 2018, p. 67).  A mãe amava seu castrador, pai de suas duas filhas. Talvez achasse que poderia dobrar os excessos com o tempo. Mas não atinou para o fato de que “Um homem quando mata, para todos que julgam ou veem o seu feito, não deixa por isso de ser homem. Uma mulher quando mata não é tida mais como ente desse mundo. Se torna algo fora do normal, uma corrupção da natureza” (idem, p. 85). A título de posfácio, Luciana Hidalgo sentencia que

A ditadura é um assunto inesgotável que incide, silenciosamente em várias gerações, em todos os que viveram e sobreviveram a ela, até hoje. Não por acaso surgem na cena literária contemporânea cada vez mais ficções sobre esse período, escritas por autores nascidos pós-golpe de 1964. Quebra-se assim o silêncio que tanto marcou a infância e a adolescência dos filhos da ditadura. É como se só recentemente, na vida madura, percebêssemos enfim os efeitos catastróficos de um regime militar que manipulou toda uma população na base do medo, da censura total à imprensa e do boicote a qualquer arte minimamente reflexiva (p. 163).

Mechugá, de Jacques Fux

Em seu “Meshugá”, romance cujos personagens extraídos do mundo real costuram uma narrativa repleta de elementos do universo judaico, Jacques Fux, ao relatar aspectos da vida de Otto Weininger lembra que “as questões do corpo e da alma nunca estão desvinculadas dos escritos” (FUX, 2016, p. 75).  Ao relembrar aspectos marcantes do mundo pós-holocausto, Fux mexe com os brios do leitor, em tempos de volta de autoritarismos pelo mundo todo. “Sete práticas contra os judeus acabaram se tornando muito comuns na Europa medieval: o batismo forçado; os sermões obrigatórios; as disputas públicas; a queima de livros; a implantação de guetos; as expulsões; os genocídios” (idem, p. 161).

Há que se ter esperança, sim, como Ângela e Otávio tiveram por mais de trinta anos, à procura de Felipe. Mas há também que se ter direito à vida, a um novo sonho, a um libertar-se para o que resta de humanidade nesta passagem terrena. Se o inferno metaforizado por Verunschk em sua trilogia é característico da repressão e do silenciamento, fiquemos com mais algumas palavras de Ítalo Calvino que pavimentam a concretude dos sonhos na busca pelo porvir:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço (CALVINO, idem, p. 158).

 

 

REFERÊNCIAS

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.

FUX, Jacques. Meshugá. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.

GALLO, Rafael. Rebentar. Rio de Janeiro: Record, 2015.

VEREUNSCHK, Micheliny. Aqui, no coração do inferno. São Paulo: Patuá, 2016.

__________________O peso do coração de um homem. São Paulo: Patuá, 2017.

__________________O amor, esse obstáculo. São Paulo: Patuá, 2018.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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