Ivy Menon

A colheita do algodão era trabalho pesado, embora a brancura de nuvem e os fios de seda enganassem. Eu e meus irmãos catávamos algodão. Acho que comecei a sumir no meio dos espinhais da safra, antes dos onze anos, e era a mais velha. Os três menores, que já podiam trabalhar, desdobravam-se, pois tínhamos meta. A cada arroba colhida, mais chance de não faltar comida naquela semana, já que nas entressafras, faltava. E não tínhamos crédito. O pai nem sempre conseguia honrar os compromissos financeiros. Nossa casa não possuía luz elétrica ou água tratada, por isso, aprendemos a tirar água, do poço, desde muito pequenos. Lamparina de querosene, até os dezessete. Como não tínhamos conforto algum, só o não ter o que comer era fantasma que estava sempre a nos assombrar.

Quando acabava tudo, a mãe, desesperada, tentava acudir os filhos, lavando roupa para fora, enquanto eu e minha irmã fazíamos faxina. Não poucas vezes, ficamos sem receber a diária, já que não era somente o pai que não pagava o que devia. A mãe, então, mandava: “vai, lá, no mercado do Seu Joacir e pede para ele vender um quilo de arroz, fiado. Fala que eu mesma pago, na semana que vem”. E eu ia. Muitos nãos eu recebi. A mãe não desistia, ordenava, segurando o choro, para que um de nós fosse ver “se tinha osso, no açougue, para doar”. Ou “pé de boi, no matadouro”. Ou “uma caneca de feijão, na vizinha”. Bendito tempo de colheita do algodão. Benditas as semanas de despensa garantida.

Para catarmos o algodão, primeiro, tínhamos que amarrar um fardo de estopa na cintura que, cheio, chegava a uns sessenta quilos. Nossas mãos ágeis de crianças bicavam as maçãs abertas do algodoeiro a arrancarem tufos de lã, até sangrarem os dedos, em volta das unhas, mas nem nos importávamos com isso. Jogávamos a neve dentro do fardo e arrastávamos a carga mais uns metros. Quando a distância do carreador ficava grande, voltávamos para pesar o recolhido, para trocar o abarrotado, pelo vazio. Deixávamos uma esteira cavada no chão vermelho, e os rastros dos nossos pés descalços, de meninos, sumiam.

Às vezes, o frio chegava, antes da hora, e o mês de maio se tornava inverno. Trabalhávamos descalços, mesmo quando a geada cobria tudo. As primeiras horas do dia eram dolorosamente geladas, mesmo no almoço, quando comíamos a boia fria. Uma marmita cada, para serem divididas em duas refeições. A água, ao contrário, era servida sempre morna. Não dispúnhamos de banheiros. O algodoal nos protegia. A humilhação das necessidades fisiológicas, não pode ser descrita. Nada sabíamos de nossos Direitos, que dirá dos tais Humanos.

Os escravocratas não têm limites. São poços sem fundo de egoísmo. Por outro lado, a submissão à opressão extrema, desde a meninice, roubou-nos a força de reação. De tanto sermos forçados, perdemos os limites sobre nós mesmos, assim, não nos pertencíamos mais. Tornamo-nos objetos para uso dos fortes, a se formar um círculo vicioso: “Coisa extremamente dura é lutar contra os aguilhões”, registra o Livro Sagrado.

Nos anos de ferro, da ditadura, o trabalho infantil, bem como aqueles em condições análogas à de escravo eram naturais, normais, aceitáveis. “Melhor o pouco que o nada”, diziam-nos, enquanto agradecíamos a Deus. O lado bom – se é que isso fosse possível – é que, sendo legal, não necessitavam nos esconder das autoridades, por isso, pudemos ir à escola e a educação nos redimiu. Abriu-nos os olhos. Arrancou-nos as algemas. Estudar fez toda a diferença na minha vida e na vida dos meus irmãos.

Quando ouço notícias sobre trabalho escravo, especialmente o infantil, choro. Não consigo ficar imune a tão grande dor: à tamanha vergonha. Sempre que uma fazenda com trabalho escravo é descoberta, flagrada, desmontada, e os trabalhadores resgatados, alforriados, a liberdade deles também se torna minha. Nossa, da minha família, dos meus amigos que morreram intoxicados pelo BHC. Dos que morreram, porque caíram do caminhão que nos levava para a lavoura, feito animais. Das minhas amigas meninas que foram para as casas de prostituição, em busca de uma vida melhor.

A Justiça que, hoje, se faz, alcança-nos, aqui, quase cinquenta anos depois da nossa redenção. Quem luta contra a escravidão sabe. Quem foi escravo sabe mais ainda.

 

Ivy Menon, 62 anos, natural de Cornélio Procópio-Pr, escreve poesia, crônicas e contos, os quais publica nas redes sociais e e revistas eletrônicas. É bacharel em Direito, com pós em Filosofia, além de jornalista e teóloga. Gosta, de verdade, de ser vovó! Aposentada, mora em Rio Negro-Pr. Uma das finalistas (Poesia) no Prêmio Off Flip em 2018 e 2019

 

3 Comentários

  1. Parabéns pelo texto triste e verdadeiro. Eu e minhas irmãs também íamos apanhar algodão. Conheço essa vida difícil. Minha mãe dizia: pobresó vai para frente através do estudo. Estudamos.

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