Mergulhei no espelho d’água. Atravessei o reflexo da memória. E cheguei ao outro lado. Fui inundada pelas lembranças como se elas estivessem sempre ali, em repouso, no profundo do inconsciente. E tudo o que senti era um amor com a força que perpassa uma vida inteira. Um sentimento que chega a ser palpável. OraMortem me atravessou. A minha primeira experiência com o espetáculo foi inesquecível, assim como as outras duas. Mas aquele primeiro contato com sua imensidão transformou algo dentro de mim. Daquele primeiro momento nasceu esse texto aqui. Mas, quando escrevi essa primeira impressão sobre OraMortem, muitas coisas escapavam do meu conhecimento. A linearidade da história, do nascimento da criação, chegou até mim aos poucos, como pequenas peças de um quebra-cabeça. Agora, diante de toda a imensidão, consigo perceber OraMortem de outra maneira, mais profunda, com uma compreensão que ultrapassa os meus sentidos. Este mergulho na memória, na hora do amor, é um transbordar que não cabe em olhos céticos. O Cidadão Cultura bateu um papo com as atrizes e pesquisadoras, Daniela Leite e Karina Figueiredo, que abriram o universo criativo do espetáculo e discorreram com emoção sobre a história que envolve este movimento do in-Próprio Coletivo.

Foto Protásio de Morais / Circula MT

Com um já extenso currículo de premiações, OraMortem circulou por mais de 30 cidades brasileiras entre os anos de 2015 e 2017, principalmente durante os projetos Sesc Palco Giratório e Circula MT. Recebeu o Prêmio Cenym de Teatro Nacional (Academia de Artes no Teatro do Brasil) nas categorias Melhor Sonoplastia e Melhores Efeitos Sonoros.

OraMortem é um espetáculo de silêncios, de luzes, de movimentos.

Dani começa a contar sobre sua pesquisa, que atravessa a filosofia e o teatro, e como OraMortem começou a ser desenhado a partir da residência artística no Sesc Arsenal, em Cuiabá:

“O OraMortem nasceu aqui, neste lugar (palco do teatro do SESC), num projeto da pasta de dança da instituição chamado Leituras de Movimento. O projeto tem a característica de uma residência artística que permite aos envolvidos um mergulho num processo de criação e intercâmbio durante determinado período. Nos últimos anos tem se qualificado enquanto espaço em que os residentes tem estabelecido novas parcerias junto a outros artistas, experimentando linguagens outras e construído novos trabalhos artísticos. Em 2014, quando participei desta imersão, pude conhecer/trocar com a artista da dança Janaína Lobo, de Teresina (PI). Ela propôs como elemento disparador da criação que os participantes experimentassem com o corpo algo que os inquietava e movia a dizer para o mundo naquele momento. A minha inquietação partia de um delírio que presenciei da minha avó há alguns anos. Em 2011, quando meu avô faleceu, meus pais moravam em Portugal e eu em São Paulo. Fui para lá passar um tempo com ela, já que o meu pai estava distante. Acompanhei o luto da minha avó, que viveu por mais de 60 anos junto ao meu avô. Nesse período ela fez uma cirurgia de catarata e, junto ao luto, passou a delirar. Ela acreditava que era jovem e começou a dizer sobre questões da sua vida sexual, a falar dos seus desejos sexuais, algo que até então era improvável de ser dito por ela. Ao experimentar esse tipo específico de fala, ela abriu uma fresta no espaço-tempo e construiu um outro mundo. Suas filhas e netas, como eu, passaram a ser vistas e tratadas como amigas íntimas com quem ela dividia seus segredos. Ela se arrumava para realizar um possível encontro com um namorado num “pagode” (festa para a minha avó e suas conterrâneas que viveram a juventude nas primeiras décadas do século 20), mesmo sem sair de casa. Ansiosa, pedia o nosso auxílio para a escolha da roupa mais adequada para tal encontro. Era incrível ver como ela vivia aquela possibilidade como algo real, atual. Ela não duvidava. Aquele momento não era de invenção ou delírio, mas de realização da potência do desejo. A família inteira estava preocupada. Todos achavam que ela estava acometida por alguma doença mental, como o Alzheimer. Eu pensava no quanto aquele desejo de dizer sobre si, de falar de suas intimidades haviam ficado soterrados em seu corpo. A morte, o luto havia se tornado o momento para transbordar tudo isso. Foi uma experiência muito forte que ficou na minha cabeça e me fez repensar enquanto mulher e artista, assim como a maneira como nos permitimos estar/ser/viver nesse mundo que tanto oprime quem se derrama. A minha avó teve que delirar para falar sobre isso!

Foto Joseph Art

Eu me ocupei dessas questões. Quando fui para a residência do Leituras de Movimento passei a trabalhar essas questões no corpo. Lá encontrei o Felipe Vincentim (1995-2016), que na residência se dispôs a pensar como a música altera os batimentos cardíacos e, mesmo, como o corpo se altera/afeta por uma questão externa, algo do qual você nem sempre tem o controle. Lembro que tinha um exercício proposto pela Janaína Lobo que se chama Arqueologia do Futuro, desenvolvido anteriormente pelo artista da dança Cristian Duarte. Na Arqueologia do Futuro você escreve o seu espetáculo inteiro em poucos minutos. É um exercício de fluxo do pensamento. Coloquei no papel uma descrição tradicional de composição de cena: cortina abre, personagem sentada numa cadeira; acende a luz… Apresentei aos colegas participantes e, no momento da troca, da partilha dessas ideias, muito me chamou a atenção a proposta do Felipe. Ele havia feito um gráfico de eletrocardiograma em várias folhas. Achei aquilo de uma sagacidade artística incrível. Pensei: ‘São os batimentos cardíacos da minha avó!’ Era como se fosse um gráfico do seu delírio, que agora já era meu. Convidei o Felipe para construir um trabalho comigo a partir desses elementos. E foi assim que começamos a criar o OraMortem. Saí da residência e comecei a convidar outros artistas que pudessem compor esse trabalho, a desdobrar essa história e esses elementos num experimento artístico. Convidei a Karina Figueredo, a Estela Ceregatti, o John Stuart, o Luiz Gustavo Lima e o Luis Segadas”, compartilhou Dani.

Foto Everton Brito

A criação em coletivo

Estava colocada em prática a proposta de criação em coletivo. Karina completa sobre como a Dani chegou com a proposta do projeto: “Lembro que a Dani comentou: ‘estou fazendo esse projeto e queria criar alguma coisa com a história dessa mulher, da minha avó’. Ela descreveu um movimento que me deixou muito tocada: a avó, que tinha 85 anos na época, olhava para as suas mãos enrugadas e, apesar do seu estranhamento diante daquelas marcas do tempo em seu corpo, não tinha dúvida que era uma jovem. E outra coisa: por que uma mulher idosa não pode desejar ou projetar futuros? A Dani nos contava essas histórias que passamos a experimentar no ateliê do artista visual Luís Segadas, onde começamos a estudar as projeções, o uso da água no cenário, assim como alguns elementos que não entraram na montagem, mas que instigaram o exercício da criação. Não tínhamos equipamentos de iluminação à disposição e, por isso, eu levava uma lanterna, luz de natal, velas… o Segadas tinha um projetor de vídeo que passamos a utilizar também. Foi um processo libertador. Com OraMortem me assumi iluminadora, no sentido de entender a presença da luz como parte da dramaturgia, e não apenas como instrumento técnico.”

Foto Protásio de Morais / Circula MT

As artistas ressaltam a importância do período de criação no ateliê como oportunidade de diálogo com outros artistas que, diante de um clima pulsante de criação puderam colaborar com a composição do espetáculo. Como afirma a Dani, “além do trânsito de pessoas no espaço, nos permitimos acoplar a outras maneiras de pensar a criação a partir do delírio da minha avó, essas duas imagens nos acompanharam: uma mulher que transborda de si, uma mulher que tem o mundo do avesso e a partir disso, o que é esse mundo do avesso? Isso foi fundamental para que não nos fechássemos numa percepção unilateral da obra. No ímpeto de desdobrar aquela célula inicial tivemos a sorte de receber em nossos ensaios pessoas que se dispuseram a esse atravessamento mútuo, como Lucas Koester, Márcia Bomfin, Clóvis Irigaray (Clovito), Maria Irigaray, Glória (Glorinha) Albuês, Juliana Capilé, Tatiana Horevitch, Marithê Azevedo e Jan Moura. Naquele momento de criação, a história transcendeu: “Deixou de ser a história da minha avó e passou a ser de qualquer pessoa que se sensibilizasse com a potência dos encontros. Conseguimos fazer com que a iluminação da Karina convidasse o espectador a narrar, ou melhor, a construir uma narrativa pessoal e possível a partir dos elementos dramatúrgicos propostos em cena. A música seguiu essa mesma premissa: conduzir sensorialmente o espectador-narrador e, com isso, sugerir um texto que não está grafado, mas que tenta ser respiração, pulsação sanguínea, batimento cardíaco. Assim, com OraMortem passamos a perseguir um corpo-cênico que para além de ser visto e escutado, aposta na abertura de brechas/frestas para se experimentar a memória”.

Foto Latitude Filmes

Dani continua: “Leitura de Movimento é um projeto muito importante enquanto politica de fomento à criação. O impacto desse projeto na nossa vida é muito significativo. É como se ele proporcionasse o movimento, a necessidade de estar em movimento. Ou, como diz o Jorge Drexler, somos una espécie em viagen. Apostamos que o exercício da criação, assim como a vida são, antes de tudo, bagagens que nos permitem fluir por espaços e estabelecer trocas. Assim, não somos apenas pertencimentos ou identidades, mas aquilo que nos faz estar em relação com o outro. OraMortem foi o primeiro exercício de experimentação e de fluidez de algo que nos fez In-Próprio Coletivo. Ou seja, o trabalho artístico a partir da estética do encontro produziu um ser-estar em coletivo.”

Foto Protásio de Morais / Circula MT

A hora do amor

A emoção me invade quando elas começam a falar sobre o Felipe Vincentim. Meu sentimento de pesar é enorme por não tê-lo conhecido, mas OraMortem traz esse despertar de algo que é maior do que a própria vida.

“O Felipe, que compôs o espetáculo com a gente faleceu no início da circulação pelo projeto Palco Giratório. Sempre nos emocionamos ao falar sobre ele. Afinal, como a gente constrói o OraMortem, que parte do pensar sobre o luto da minha avó como um impulso de vida, de desejo e de futuro e, depois, perdemos o Felipe de uma maneira tão inesperada? Isso nos colocou a experimentar o luto, a morte, a falta como algo real, próximo, afetivo. Quando o Felipe foi embora a gente pensou que esse nome, OraMortem, tem muito de orAMORTEM, ou melhor, o amor que há, ou o quanto de amor tem em nossas vidas, histórias, linguagens, propostas, desejos, potências. O quanto o amor pode ter força de nos mover. Como a gente vai caminhando e correndo com isso, o quanto desse amor, dessa “hora do amor” tem aqui? Não sabemos a potência disso tudo, mas decidimos que não vamos deixar isso morrer, pelo Felipe e pelo movimento que criamos entre a gente”, revela Dani.

Para Karina, quando Dani levanta a questão do amor no nome referenda OraMortem: “Isso que a Dani levantou do amor foi um baque, meio que referendou, e descobrimos isso, essa rede de afetos que é o in-Próprio Coletivo. Acho que com a partida dele isso ficou mais claro. É claro que a gente não vai parar com esse espetáculo, porque temos que mostrar a criação dele, por mais que outros atores entrem para fazer com a gente, a criação é dele. O desenho que criou o espetáculo é dele”, comenta. Atualmente quem interpreta a sua parte no espetáculo são os atores Pedro Vicente e Alexandre Cervi.

Foto Latitude Filmes

Dani diz que Felipe era uma pessoa silenciosa: “Essa prática do corpo naquele momento tem muito haver com ele. Ele não era uma pessoa de ficar dizendo o que é, discutindo, ou dando conta das palavras que dizem sobre isso, ele era muito silencioso. E uma pessoa muito leve… O Felipe flutuava, sabe? E quando ele foi e olhamos para esse trabalho, ficamos pensando, tem muita música, mas é uma música de um silêncio, uma música que acontece dentro do corpo dessa mulher, porque ela está criando tudo isso. É um espetáculo que fala de silêncio, é lento, algumas pessoas até se incomodam, e pensamos no quanto tem da assinatura do Felipe nisso, porque nós somos tagarelas, falamos rápidos, queremos dar conta de tudo, e essa assinatura dele é muito forte no espetáculo”.

“Leitura de Movimento possibilita essa troca com outros artistas. Eu não participei da residência com a Janaína, mas eu a conheci quando ela veio assistir ao OraMortem. Isso permitiu estabelecer um tipo de vínculo afetivo e de uma troca que se mantém até hoje. Quando vamos à Teresina a gente se encontra; acompanhamos daqui o festival de dança que ela organiza, o JUNTA. O Leituras de Movimento é uma força, uma possibilidade de estabelecer pontes entre os artistas desse Brasil continental”, observa Karina.

Foto Tarcísio de Paula

Esse vínculo de força, de amor, permanece vivo no sonho que OraMortem carrega, perpetuando a arte do Felipe. Essa rede de afetos, de arte, de trocas, joga luz em nossas sombras e ilumina novas possibilidades de ser, de existir, com o amor atravessando todas as experiências. E que OraMortem continue a despertar memórias submersas.

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