Têm artistas que dão viradas na carreira de uma forma tão radical que a transformação não deixa nem rastro daquilo que fora. Falo de linguagem, visual, postura, poética, atitude, como se um artista substituísse o outro na forma de expressar sua arte. Isso leva a pensar o quanto somos diversos em nossas potencialidades, do quanto podemos ter de personalidades guardadas em nosso inconsciente e que pode emergir a partir de um estímulo ou outro. Um caso clássico de diferentes vozes poéticas em um mesmo corpo é Fernando Pessoa com seus heterônimos, é impressionante como Alberto Caeiro é diferente de Ricardo Reis, de Álvaro de Campos, e de Fernando, ele mesmo.

Criolo na música popular brasileira saltou de um rap engajado para um disco de samba absolutamente surpreendente, com qualidade inquestionável e tanta naturalidade nas composições que sustenta isso aqui que estou falando. É outro cara, no mesmo cara, no caso, com a mesma cara.

Por aqui quem deu uma reviravolta na carreira e apresentou um trabalho que surpreendeu pela capacidade de se reinventar com um disco novo repleto de experimentos unindo estruturas sonoras sintetizadas foi o Rogê Além com Analosintético. Ele vinha de trabalhos com a banda de rock indie Engenho de Dentro, depois o folk e o blues com formações mais convencionais até experimentar essas outras formas musicais. Fui ver o show de lançamento no teatro do Sesc Arsenal e saí bastante satisfeito, além de ficar intrigado com essa questões que levanto. Até onde vai a capacidade de nós humanos de sermos outros? É bom lembrar que caminhamos para isso, fatalmente tornaremo-nos seres híbridos, vem aí os ciborgs, pessoas com partes do corpo bio-tecnologizados. Analosintético é o nome que já trás em si o conceito, palavra inventada – palavra híbrida que contém o analógico e o sintético numa soma conceitual bastante feliz.

foto Henrique Santian

Acompanhado de aparato eletro-eletrônico com bases musicais pré gravadas e a guitarra solo – textural – criando malhas e manhas sonoras psicodélicas, às vezes pulsantes e nervosas – de Danilo Bareiro, além da participação muito especial de Caio Mattoso com uma performance discreta e eficiente, enfim, um belo show, anarco e bem dosado. A música numa medida equilibrada deixou o Rogê muito a vontade para soltar o corpo num mise en scène expressivo e bem trabalhado. o corpo fala, ele dança, atua, pontua com gestos bem expressivos e dá corpo à música, uma extensão perfeita para acentuar seus versos que versam sobre amores, encontros, desencontros, metafísica, filosofia de ser e futuros desejáveis. Ele transmite uma crença inabalável naquilo que chamamos humanidade com um pouco de ironia, mas muito amor pelas pessoas.

A base construída de nuances e malhas sonoras eletrônicas, com texturas híbridas e bem executadas, dão margem para um belo trabalho musical que, ora é dançante, ora viajante com sugestões de paisagens e transcendências que flerta fortemente com esses novos vôos psicodélicos que vêm alimentando pistas de festas contemporâneas. Existe um novo boom de substâncias psicodélicas a agitar e expandir as consciências das novas cabeças pelo planeta. São ondas que vêm e vão multiplicando nossa percepção a cada nova descoberta. Analosintético convida a dançar a dança do amor e da tolerância. Rogê é uma voz que convida para celebrar e acreditar em nós mesmos e uns nos outros. Nesses tempos de ira e falta de paciência foi um belo convite que nos leva a refletir e sentir um pouco daquilo que chamamos harmonia e paz nos corações. Venha, vamos dançar e deixar de lado esse mau humor crônico que nos afasta da pista. A vida pode ser bem vivida e curtida, com mais leveza e poesia.

 

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