Marcelo Moutinho é contista com algumas obras publicadas nos últimos vinte anos. Por esses dias disse a ele, via Facebook, que havia comprado em um sebo um livro antigo, de sua autoria. Adoro quando consigo essas raridades às quais os autores devotam total esquecimento. Claro que há certo anacronismo em se comparar textos atuais com os de antigamente, e não é este o meu intuito.

Marcelo Moutinho

Pois, lendo “um certo medo da noite”, fui percebendo como o olhar é o sentido mais presente na escrita. De maneira consciente (ou não) os contos vão colocando em evidência a força dos olhos, a presença forte e vigorosa da visão como elemento significativo, não que os outros sentidos sejam desprezíveis, pelo contrário, mas a força dos olhos coloca os demais em posição de sentido, sempre alertas, para que as janelas da alma explorem as minúcias e contundências de cada gesto. Moutinho trata de relações heteronômicas plasmadas em sua leitura de Fernando Pessoa e seus outros “eus”.

Um de seus contos, intitulado “Variações sobre um mesmo tema”. Dedicado à Walter Salles, lê-se que “A minha ilusão tomou forma de um navio imponente, de uma infância lembrada, de um alguém desejado. Sem porto, sem destino, tornou-se um mar, despejado como um comboio de lágrimas estanques por uns olhos cheios de ver”(MOUTINHO, 1998, p. 63). Ilusão, forma, navio, infância, alguém, porto, destino, mar comboio, lágrimas e, por fim, olhos, formam uma sequência espetacular de substantivos que encaminham o leitor (pelo menos a mim) por um universo de expectativas diante do desconhecido.

E essa imagem se forma em minhas retinas (primeiro no cérebro, por conta de milhões de sinapses) dando conta do que seria esse mar de imagens, essa ilusão em forma de navio, esse marulhar das formas, em meio ao sal da lágrima e ao do mar, espécie de comboio líquido que me fala ao coração. E a prova de que alguns vocábulos, sobretudo substantivos nos perseguem ao longo da vida encontro na sequência, no mesmo conto: “Via o nosso fracasso, viva a minha ferrugem e o rosto inerte daquele navio” (idem, p. 64).

Observei também por estes dias que Adriana Lisboa também me oferece a mesma perspectiva crítica em um de seus romances. “No quarto escuro, Celina via pela janela o céu cada vez mais escuro, lembrava-se de um poema de que falava de azul corvo, essa cor que agora parecia ganhar em veludo o céu do último dia” (LISBOA, 2014, p. 95).

Azul-corvo (aqui com o hífen) é o título de um de outro romance que trata da Guerrilha do Araguaia. Tenho a certeza de que algumas palavras nos perseguem, a nós, escritores, não como elemento repetitivo, mas distintivo de uma peculiar visão de mundo, traduzida em palavras, parágrafos, estrofes, livros.

Dezenove anos após esse livro de contos, Marcelo Moutinho lança “Ferrugem”, premiado conjunto de narrativas que tratam a palavra com o cuidado de quem escreve sabendo aonde quer chegar (penso). “Depois de oito anos de casamento, ele vivia aquela fase em que o deleite da busca é muito maior que o prazer do encontro” (MOUTINHO, 2017, p. 69).

E por que digo isso? Pela necessidade de utilizar poucas palavras para construir uma história. Não que o conto possa prescindir de elucubrações e reviravoltas, longe disso. “A impressão de que, embora diferentes, algumas coisas continuam. Como aquela chaminé cor de ferrugem há tanto tempo desativada. A gente consegue enxergar do bairro todo” (idem, p. 141).

A literatura decididamente é uma linguagem fantástica, mais do que manifestação artística, construto racional e imprevisível. Gosto de pescar curiosidades para meus textos, por isso recuso a pecha de resenhista, embora às vezes possa até parecer que seja. Chamo meus textos de crônicas e insisto nisso, até porque a crônica aceita uma infindável gama de recursos que nem sempre caem bem em outras narrativas.

Sei que este mês sai novo livro de Marcelo Moutinho. Tenho muitos ainda para ler, sobretudo romances. Mas assim que der de frente com ele em alguma livraria trarei para casa e o colocarei em alguma das estantes, em meio aos que ainda não li (e que são muitos). Aguardo pela “Rua de Dentro” para revisitar espaços públicos do Rio de Janeiro que conheci um dia…

 

REFERÊNCIAS

LISBOA, Adriana. Rakushisha. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.

MOUTINHO, Marcelo. um certo medo da noite. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

___________________. Ferrugem. Rio de Janeiro: Record, 2017.

Compartilhe!
Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

Deixe um comentário

Please enter your comment!
Please enter your name here