Há um rito de morte institucionalizado na sociedade brasileira. A violência para com as pessoas negras é escancarada nas manchetes sangrentas dos jornais. Mais uma notícia que nos sufoca é veiculada no Dia da Consciência Negra, data que reverencia a vida e luta de Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, símbolo da resistência durante o período de escravidão no Brasil.

Outra vítima, outro nome, a mesma história que se repete. Desta vez, João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, é assassinado por dois seguranças do Carrefour em  Porto Alegre. O mesmo supermercado que escondeu o corpo de um trabalhador, que faleceu durante o expediente, em meio aos guarda-chuvas.

O preço da vida etiquetado como se fosse mercadoria, descartável. A comoção pela morte de João Alberto é diferente da que vimos no brutal assassinato do norte-americano, George Floyd.

Luta contra o racismo tem avançado em todo o mundo

Essas diferenças dizem muito sobre nós enquanto sociedade. O sangue escorre e aqui não nos importamos em curar essas feridas que seguem abertas.

Agora, o Carrefour anunciou um fundo de R$25 milhões para o combate ao preconceito e ao racismo estrutural no Brasil. Mas, será que é o dinheiro que consertará essa política institucionalizada de morte e tortura? Essa cultura de que pessoas possuem valor de acordo com a cor da pele? Do status social? Se é justamente a lógica capitalista que se fundamenta nesses critérios para se perpetuar violando e explorando seres humanos?

Quando a empresária, Luiza Trajano, dona da rede Magazine Luiza, divulgou a iniciativa de criar um trainee para negros, foi duramente criticada. Mas, basta olhar atentamente para as imagens dos programas de trainee das maiores empresas do país, para os cursos nas melhores universidades, para os cargos de liderança. A maioria das pessoas é branca, o que não reflete a realidade da população brasileira, majoritariamente parda e preta.

Anibal Quijano, no livro Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina, fala sobre como novas identidades sociais foram construídas a partir da descoberta do continente latino-americano.

A globalização em curso é, em primeiro lugar, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial de acordo com a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo.

Quijano explica que dois processos históricos convergiram e se associaram na produção do referido espaço/tempo e estabeleceram-se como os dois eixos fundamentais do novo padrão de poder:

Por um lado, a codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, ou seja, uma supostamente distinta estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em relação a outros. Essa ideia foi assumida pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações de dominação que a conquista exigia. Nessas bases, consequentemente, foi classificada a população da América, e mais tarde do mundo, nesse novo padrão de poder. Por outro lado, a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial.

Com isso, as novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. “Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se. Desse modo, impôs-se uma sistemática divisão racial do trabalho”, demonstra Quijano.

Protestos contra o racismo e a discriminação racial se espalham em todo o mundo

Ainda precisamos avançar muito na democratização do acesso, em garantir chances iguais em um sistema desigual. As pessoas não estão representadas, seja no mercado de trabalho, seja no poder público. Isso são dados e fatos. Não há como maquiar a realidade a que estamos submetidos.

É dever e responsabilidade de todos a contribuição cidadã em acabar com essas marcantes desigualdades, alicerçadas no racismo estrutural. Não podemos alimentar as ilusões de que o fim do racismo chegará como mais um produto através do “deus mercado”, que se alimenta desse sistema cruel para continuar produzindo riqueza para poucos e miséria para muitos.

E aí, no fim do dia, quando nos entorpecemos com mais e mais notícias aterrorizantes, o dinheiro consegue apagar esse rastro de sangue e dor?

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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