Qual é a potência do corpo? Quais são as transformações possíveis, dentro e fora, quando começam a se romper as amarras culturais históricas sobre toda a diversidade de existir? Quantas histórias deixaram de ser contadas porque os corpos não eram aceitos? Quantas vozes foram silenciadas porque seus corpos não representavam o corpo idealizado? Quantas pessoas não aceitam seus próprios corpos? Quantas outras se violentam? Quantos discursos reproduzimos sem pensar no que significam e na extensão do dano que causam em outros corpos e vidas? São questões que foram lançadas e não voltam mais para as gavetas dos esquecidos. Esses corpos diversos, e a devida representatividade de ter e ser um corpo, quebram o sentimento de inadequação cultivado e criado graças à uma sociedade que consome corpos como produtos. E é sobre corpos gordos, sobre mulheres e seus corpos, que trataremos nesta entrevista com Maria Luisa Jimenez, gorda, filósofa feminista, ativista em processo dinâmico, doutora em Estudos de Cultura Contemporânea na UFMT, e que pesquisa o lugar social do Corpo Gordo Feminino. Para ler a tese, clique aqui.

Foto Ju Queiroz

Malu é fundadora do grupo de estudos transdisciplinares do corpo gordo no Brasil, idealizadora do projeto LUTE COMO UMA GORDA, fundadora das redes sociais Estudos do Corpo Gordo Feminino, e faz parte do coletivo feminista GORDAS XÔMANAS em Cuiabá. Além disso, é colaboradora/escritora no Todas Fridas e faz o programa PESQUISA GORDA em colab com Agnes Arruda no youtube e podcast.

Foto Ju Queiroz – Coletivo feminista GORDAS XÔMANAS

Sobre o coletivo feminista GORDAS XÔMANAS, que existe há um ano em Cuiabá e nasceu como uma das propostas do projeto/ação “Lute como uma gorda”, ela diz: “O coletivo surgiu a partir de um grupo de mulheres gordas de Cuiabá que começaram a frequentar as rodas de conversas, palestras e eventos propostos pelo lute e sentimos a necessidade de nos reunirmos, apoiarmos e criarmos uma rede de mulheres gordas na cidade para que a gente pudesse falar de nossas dores e estratégias de como estávamos lidando com elas, além de estudar textos, livros e outros ativismos, para um empoderamento e organização de ações para apoiar outras mulheres gordas. Agora na quarentena, estamos nos reunindo online, já que os encontros e eventos presenciais foram suspensos”, complementa.

Foto Ju Queiroz – Coletivo feminista GORDAS XÔMANAS

Nas respostas abaixo, a filósofa aprofunda os seus estudos e questionamentos sobre o corpo:

- Seus estudos despertam para uma consciência coletiva, necessária e urgente, 
a respeito da relação com o corpo e a forma como somos bombardeados para nos 
enquadrarmos em determinados padrões. Dar conta em palavras das violências 
cotidianas. Como é para você ocupar este espaço de dar visibilidade a histórias 
tradicionalmente silenciadas?

Acredito que tudo parta de mim, do meu corpo gordo, das minhas opressões, é o meu lugar de dor. Então, eu fui entendendo na pesquisa que minhas dores, traumas e opressões como mulher gorda também aconteciam com outras milhões de mulheres no mundo… É tipo um chamado, você anuncia sua dor e muitas outras se identificam com ela e se juntam em manada. Isso não quer dizer que todas as mulheres gordas como eu somos iguais e sofremos todas as mesmas opressões, muito pelo contrário, se você pensar numa mulher preta, trans, periférica, sapatão, irão sofrer outras opressões além das minhas.

Ilustração Eva Uviedo

Como fiz na tese, é falar de mim mesma nesse caso, é falar de histórias invisibilizadas, é chamar essas mulheres para contar para o mundo o que elas sofreram, sofrem e estão dispostas a fazer com tanto sofrimento.

- A violência da gordofobia é apontada em relatos sobre o corpo. Como a 
literatura/palavra contribui para transformar esta realidade?

A literatura/palavra em suas diversas manifestações: poesia falada, música, pichação, poesia, ensaios, diários, depoimentos, redes sociais, teses e dissertações coloca na mesa uma quantidade enorme de ferramentas para que a gente possa expressar nossas dores e resistências. A fala, a conversa é transformadora, é o que a feminista negra Audre Lorde nos alerta: quantas opressões e tiranias engolimos nossa vida inteira até adoecer e morrer em silêncio? Então, essa dor deve ser verbalizada, compartilhada, falada, anunciada.

- Qual é o papel da mídia e das redes sociais neste contexto de reforçar os 
padrões sociais e culturais para o corpo?

A gordofobia é um estigma cultural, estrutural e institucionalizado. Ela está em todos nós e em todos os lugares. A mídia tem um papel decisivo na transmissão e apoio a esse preconceito como discurso de poder que naturaliza o ódio ao corpo gordo. Observe agora na quarentena, por exemplo, como a mídia mainstream tem batido na mesma tecla, que somos grupo de risco, os memes nas redes, as piadinhas e vídeos nos grupos de WhatsApp, onde coloca o engordar nessa quarentena como um perigo às vezes maior do que contrair o vírus. Isso é de uma crueldade.

Foto Ju Queiroz – Coletivo feminista GORDAS XÔMANAS

Mas não vi até agora nenhuma mídia denunciar que os hospitais, consultórios e PSFs estejam preparados para receber a população gorda, com macas, cadeiras, aparelhos para esses corpos, já que somos no Brasil, mais da metade da população considerada “obesa”. O impacto psicológico e cultural na contribuição dessas notícias para a sociedade que já demoniza as pessoas gordas e para as próprias pessoas gordas é devastadora. Acaba justificando o ódio social aos gordos e quem é gordo entra em traumas e dores profundas por ter um corpo grande, acredito que essa pressão social mata mais que a própria doença que inventaram “obesidade”. 

- É perceptível uma mudança na indústria da moda em abraçar a diversidade dos 
corpos. Como você percebe este movimento? Ele, de fato, contribui para um 
avanço e uma eventual disrupção?

Eu não sou da moda, não é meu lugar, mas observei na minha pesquisa na Internet esse crescimento, mas também uma representatividade equivocada desse corpo. Temos por um lado um mercado, feiras, lojas, marcas preocupadas com esse mercado “plus size” para pessoas gordas, mas também vemos uma venda de corpos plus size que não são gordas e que repetem um padrão de corpo aceitável e “belo” socialmente, mulheres brancas, sem barriga, loiras, poucas estrias e celulites, etc… Também é importante destacar que as mulheres gordas mais pobres não têm esse acesso, porque a maioria das marcas são para classe média-alta. Encontrar uma loja popular com preços acessíveis é muito difícil.

Foto @salomonmoralescano

Fechamos uma collab muito importante com a marca @putapeita para que as camisetas com frases feministas fossem pensadas para os corpos gordos femininos, e a marca comprou essa ideia. Desde o ano passado elas trabalharam desde tamanhos maiores até as modelagens que são diferentes para o corpo gordo e dia 23 agora lançamos essa parceria. Acho que são poucas as marcas que estão dispostas a pensar e propor isso, infelizmente

- Vivemos uma mudança paradigmática no campo social e cultural, com uma forte 
guinada conservadora, mas também com movimentos cada vez mais fortes e 
integrados em defesa das liberdades individuais. Qual é a sua avaliação do 
momento histórico e como analisa estas mudanças? Elas são sentidas pelos corpos 
historicamente violentados e invisibilizados, tanto de um lado quanto do outro?

 Infelizmente estamos vivendo tempos muito conservadores, mas se você olhar para a história da humanidade: toda vez que houve muita repressão houve revoluções, o povo não aguenta, os invisibilizados estão em seus limites. E a Internet tem muito a contribuir nesses novos novíssimos ativismos, como é o ativismo gorde, falo disso na tese: vozes silenciadas puderam falar na Internet, tribos e identificações aconteceram, por exemplo hoje tenho uma rede gigante do ativismo gorde pelo mundo, na América Latina. Esse momento de retrocesso tradicionalista e religioso é onde nossos corpos dissidentes estão Re existindo, sobrevivendo, lutando, ocupando e colocando nossa voz para ser ouvida. Tudo isso tem muito a ver com o nome da minha tese e de meu projeto ação lute como uma gorda! Já que minha tese é escrita em primeira pessoa, usando a autoetnografia, na qual escrevo de maneira simples para que todas as pessoas, ou o maior número delas possam ler, ter contato com essa denúncia pública que faço à partir das palavras para finalizar mostrando que estamos vivas, estudando, cantando, falando, fazendo arte, pesquisando, escrevendo e Re existindo a toda essa crueldade que se chama gordofobia.

Foto Ju Queiroz
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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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