Por Glória Albues*

Um cortejo religioso, dança e canta ao som de tambores, atabaques, agogôs e xequerês, pelas ruas do Centro Histórico de Cuiabá, rumo ao alto da colina, onde está edificada a Igreja N. Sra. do Rosário e São Benedito. É o povo de terreiro que fará mais uma vez a lavagem das escadarias do templo, para agradecer a proteção, reafirmar a fé e reverenciar o santo negro, em companhia dos orixás, sob as bençãos de Oxalá.

Meu São Benedito, vossa casa cheira,

cheira cravo, cheira rosa,

cheira flor de laranjeira

O santuário fica nas proximidades do Largo da Mandioca, local de triste memória para os praticantes das religiões com matriz africana, pois ali os negros escravizados eram cruelmente torturados no pelourinho, da então Villa Real do Senhor Bom Jesus de Cuyabá, na primeira metade do século XVIII.

Por cima da dor secular sepultada nesse chão, o cortejo religioso, desfila, de peito aberto, sem medo, a alegria, o amor, a celebração da temperança, o orgulho da resiliência, o exercício da fé, em plena luz do sol que ilumina a cidade. Não é pouco. Nem antes nem agora.

Nas bandeiras brancas, empunhadas por braços fortes, de homens e mulheres, a palavra paz pintada em azul celeste, tremula ao vento. É de azul e branco, as cores do Santo. Faz um profundo sentido pra todos nós, negros, índios, brancos, nestes tempos tão sombrios. O coração de quem vê, palpita de esperança. Quando?

A procissão alcança a igreja, construída por volta de 1730, pelos negros forros e escravos libertos, fundadores da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Cuiabá, em homenagem à padroeira. A Capela de São Benedito erguida também por devotos negros, foi anexada ao edifício posteriormente.

Ó, que santo é esse que vem lá de fora?

É São Benedito e Nossa Senhora

A procissão representa simbolicamente, o retorno do povo de terreiro à casa secular. Um reencontro à céu aberto, quase impensável até há poucos anos, das práticas religiosas herdadas dos antepassados com a fé católica e, que hoje se amplia a outras religiões. Uma celebração ecumênica. Já não serão perseguidos ou presos. Já não serão torturados nem mortos. Não por esse motivo. Pois o que não se pode calar é que  a maioria  da população deste país, continua sendo cotidianamente vítima de incontáveis crimes, por causa da cor da pele.

As mães e as filhas de santo, com suas quartinhas (vasos) despejam água de cheiro nos degraus e são ajudadas pelos pais e filhos de santo que com as vassouras de piaçava varrem o mau-olhado, a inveja, o desamor, o preconceito, a intolerância, o racismo, o dragão da maldade que nos assombra a cada dia.

Lavam as impurezas da cultura do ódio que mancham tantas retinas. Purificam o olhar.

Crianças, jovens, senhores e senhoras, com seus trajes e adereços, vestidos de branco, usando turbantes, colares de miçangas coloridos, ritualizam no adro da igreja gestualidades e sonoridades ancestrais, criando um círculo sagrado, onde se pode sonhar um mundo compartilhado por todos.

“Refletiu a luz divina dentro do seu esplendor

vem do reino de Oxalá, onde há paz e amor/

luz que refletiu na terra, luz que refletiu no mar

luz que veio de Aruanda,  para todos iluminar

Umbanda é paz e amor…”

Eu lembro a rezadeira do rio abaixo: – O mundo é pra nós tudo. O mundo é pai criador.

Eu lembro o povo do Candomblé:- Èyi tí Olórun bùkún gbogbo (Que Deus abençoe a todos).

Eu lembro a saudação islâmica: Salaam  Aleikum (Que a paz esteja sobre vós)

Eu lembro então, o velho índio bororo, que uma vez me disse: – Nós somos tudo um Só.

Que assim seja. Gloria a Deus nas alturas e paz aos homens de boa vontade. Amém. Axé.

Fotos: Carlos Caetano e José Medeiros

*Glória Albuês é cineasta, pesquisadora, roteirista, escritora, gestora pública, 
animadora cultural e muito mais...

+in memorian

Minha bisavó Maria Joana 

do Quilombo do Mata Cavalo 

 

                                         

 

 

                                                                   

17 Comentários

  1. Que bela matéria, parabéns Glória e a todos os envolvidos neste projeto, são culturas como está que já mais devem ser esquecidas, devemos lembrar às crianças de hoje, que existiu um passado de sofrimento e luta árdua para que chegassemos aqui, identifico meus ancestrais nesta pequena matéria e a mim mesmo. Palavras é pouco para expressar a emoção que sinto agora. Só tenho a agradecer que ainda tem você Glória e todas estas pessoas para dar visibilidade e voz a estas pessoas magníficas que lutam até os dias atuais em prol de uma causa nobre que é a raiz do Brasil. Parabéns e que Deus abençoe a todos em especial a Mãe Maria que é a cara, o corpo e a alma desta lavagem, não a conheço, mas terei o prazer de conhece-la que grande mulher, os ancestrais estão felizes, ao ver tanta dedicação. Parabéns estive de longe na lavagem observando que coisa linda. Parabéns, parabéns e parabéns.

  2. Glória, querida! Que texto lindo! Impecável! Sensivel como você.
    Que a sua voz ecoe nos corações e consciências levando ao despertar para uma sociedade irmanada em sua diversidade cultural.

  3. Quanta emoção ao ler uma matéria como está, parabéns a você Glória e ao organizadores deste belo evento. Que venha mais no ano que vem, e no outro e por todos os anos, fiquei feliz em participar deste grandioso evento e daremos continuidade, para que seja melhor a cada dia, com a uniao de todos é melhor. Que Deus abençoe nossa união.

  4. Só a sua sensibilidade, Glorinha, para fazer um registro tão comovente.
    Lembrei-me que foi vc a primeira a me mostrar os recantos mágicos de um Cuiabá que não tive a alegria de conhecer. Era 1980 quando assisti o seu maravilhoso “Rio abaixo, rio acima”; agora, passado tantos anos, é novamente vc a traduzir esse Cuiabá que não está no passado: persiste, existe, e mostra-se fecundo, sob o um azul tão límpido, a festejar os seus deuses de todos os matizes. Obrigada por dividir conosco a ancestralidade do seu povo.

  5. Que belo texto. Emociona pela poética e pelo reconhecimento à ancestralidade africana e o ecumenismo que tanto faltam no Brasil de hoje. Salve o sincretismo que nos faz lembrar que somos todos um só. Salve a resistência dos povos de terreiro. Salve a arte e a artista que valoriza suas tradições.

  6. Obrigada, Glorinha pelo olhar poético sobre nós, somos sobrevivente de um povo querendo, a única coisa que queremos é ter um momento de comunhão sem temer a represália por expressar a nossa fé e devoção, Gratidão, a Comissão de coração agradece.

  7. Obrigada, Glorinha pelo olhar poético sobre nós, somos sobrevivente de um povo guerreiro , a única coisa que queremos é ter um momento de comunhão sem temer a represália por expressar a nossa fé e devoção, Gratidão, a Comissão de coração agradece.

  8. Amigos, nem sei o que dizer diante de tantas palavras gentis e amorosas. Acho que a sensibilidade que me apontam está também em cada um de vocês. Daí a sinergia. E cada vez mais me convenço que fora do amor não há salvação possível.Porque através dele vem tudo: alegria, solidariedade, compartilhamento, epifania, respeito à diversidade, justiça social, ternura, alumbramento. O amor é a religião de Deus.

  9. A Tereza Albues, minha irmã é muito parecida fisicamente com a nossa bisavó Maria Joana, nascida no Quilombo de Mata Cavalo e a quem dedico a crônica. Dá só uma espiada.

  10. Parabéns Glorinha pelo texto que exprime a verdade da nossa cultura popular e define a essência do sincretismo religioso que nos une e nos educa.

  11. Parabéns Glorinha pelo texto que exprime a verdade da nossa cultura popular e define a essência do sincretismo religioso que nos une e nos educa. Viva!

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