Por Leonardo Roberto*

“Ouvi uma piada uma vez: Um homem vai ao médico, diz que está deprimido. Diz que a vida parece dura e cruel. Conta que se sente só num mundo ameaçador onde o que se anuncia é vago e incerto.
O médico diz: “O tratamento é simples. O grande palhaço Pagliacci está na cidade, assista ao espetáculo. Isso deve animá-lo.”
O homem se desfaz em lágrimas. E diz: “Mas, doutor… Eu sou o Pagliacci.”
Boa piada. Todo mundo ri. Rufam os tambores. Desce o pano”

Fãs do universo dos quadrinhos e cinematográfico da DC devem se lembrar dessa piada, contada pelo vigilante mascarado e maníaco, Rorschach, um dos personagens centrais de Watchmen, Magum Opus do maior quadrinista vivo, o britânico Alan Moore. O gracejo é contado por meio do diário do vigilante, onde ele compila seu desprezo pelo o que a sociedade se tornou. Rorschach usa a piada para refletir em torno da morte de outro personagem, o Comediante, um soldado violento e alcoólatra que tinha no alívio cômico a sustentação de seus dias pós-guerra do Vietnam, carregados de culpa e falta de propósito.

A relação entre a comédia e a tragédia é antiga, relatada desde os cultos ao deus Dionísio – deidade do vinho e das metamorfoses – celebrações fundadoras do teatro ocidental moderno. As tragédias gregas abordavam a vida de deuses, semideuses e heróis e não raro edificavam a figura desses personagens ao humanizá-los por mais atrozes que suas ações pudessem ser. A comédia, por outro lado, tratava questões mundanas, mas não se limitava, tomava liberdades e por meio da inocência lúdica satirizava até mesmo os deuses, usava o humor para levar a vida dos reis à boca do povo e, em sua gênese popular, fora, desde o começo, alvo de censura e um instrumento da democracia ateniense.

Alan Moore sabia disso ao escrever o roteiro de Watchmen, repleto de referências mitológicas. Sabia também que sua versão da piada “O Paciente” era antiga e bem documentada na Inglaterra, frequentemente associada ao mais famoso palhaço inglês do período vitoriano, Joseph Grimaldi, que, ao contar piada/história similar, colocava-se como o palhaço que procura o médico, unindo chavões: “a vida imita a arte” e “rir para não chorar”.

Grimaldi, o palhaço dos palhaços, vinha de uma linhagem de artistas e dançarinos londrinos. Seu pai havia alcançado os palcos dos mais prestigiados teatros parisienses, antes de morrer, deixando dívidas para a mulher, que atuava como arlequina, e o filho de nove anos. Contudo, Grimaldi atingiu a fama que nenhum outro palhaço havia conhecido, tornando-se personagem central nas peças que atuara. Rodou toda a Europa com seus números. Após anos de extenuantes atuações energéticas que entretinham as aristocracias, passou a sofrer degeneração física, agravada pelo alcoolismo, morrendo pobre em um subúrbio londrino, deixando uma esposa e um filho, ambos com tendências suicidas. Charles Dickens, que reescreveu a autobiografia do homem que mudou a palhaçaria, comenta sobre as inusitadas interações que o ator promovia junto à plateia, frequentemente, zombando da rainha e dos ricos. A plateia, nesse caso, é quem assumia o papel do bobo.  “I am grim all day but I make you laugh at night” (“Eu sou sombrio o dia todo, mas eu o faço rir à noite”) dizia Grimaldi. Grimaldi, grim-all-day.

O palhaço tragicômico criou um padrão, inclusive estético, consolidando o uso de maquiagens ao desenhar uma expressão de alegria e êxtase em um rosto pálido, pintado de branco. Alan Moore capturou o ethos dessa classe de personas marginalizadas, trazendo a comicidade cínica em seus personagens, gritante no Comediante de Watchmen, um psicopata que ateia fogo em camponeses e comete estupros, rindo, usando um rosto feliz como broche. “Uma vez que você percebe como tudo é uma piada, ser o Comediante é a única coisa que faz sentido”.

Quase simultaneamente ao lançamento de Watchmen, em 1987, o arqui-inimigo de Batman ganha uma história de origem pelas mãos de Moore. A Piada Mortal é lançada em 1989, com uma abordagem adulta sobre como um comediante fracassado e pobre que, com a morte de sua mulher grávida e uma sequência não fortuita em um assalto, é quebrado e se transforma no “palhaço do crime”. A mensagem que o Coringa transmite para Batman e para o leitor é a de que você está a um dia ruim de se transformar nele próprio. Isso passa a dar a tônica dos embates entre o herói e o vilão.

Bruce Wayne também teve seu dia ruim, na ocasião em que, ainda criança, presencia a morte dos pais, motivando-o a assumir o papel de vigilante mascarado de Gotham. Com um uniforme cartunesco de morcego, passa a vigiar e punir o crime. Apesar do tom sombrio que o herói leva, representa a ordem e a moral, que o transforma em uma singular figura apolínea em uma Gotham infestada pelo crime. A tese do Coringa é de que eles se equivalem, se sustentam, ambos são loucos, isso transparece em sua relação. A coexistência e mutualidade entre os universos dionisíacos e apolíneos, do caos e da ordem. Esse é o moto de O Cavaleiro das Trevas, com um Coringa brilhantemente interpretado por Heath Ledger. Mas o que acontece quando deixamos Apolo como figurante e voltamos o holofote para Dionísio?

Essa premissa já seria adotada nos quadrinhos, como na obra “Coringa” de Brian Azzarello e Lee Bermejo, mostrando o palhaço em sua versão “Princípe do Crime”, completamente drogado, dizimando adversários e inocentes sem nenhum remorso, para ser impedido pelo homem-morcego no desfecho da história. No filme de Todd Phillips, não há espaço para o heroísmo. Bruce Wayne é apenas uma criança e o milionário que representa a suposta ordem é seu pai, Thomas Wayne que, nessa trama, surge como candidato a prefeito em uma Gotham decrépita, suja e infestada de ratos, tendo no pano de fundo social a desigualdade, que é extrapolada em protestos de rua. “Gotham perdeu seu rumo”, anuncia o candidato, em um discurso messiânico e oportunista. O milionário do mundo dos negócios, truculento e durão, promete reviver a aurora da cidade. A realidade material, que sustenta a visão de mundo da dinastia Wayne na trama, é completamente diferente daquela vivida pela grande maioria dos espectadores no filme, a vida do protagonista, Arthur Fleck, está muito mais próxima da realidade de todos que foram ao cinema contemplar a grande atuação de Joaquim Phoenix. O Batman, mesmo com uma trajetória trágica e conturbada, é uma figura sobre-humana: extremamente rico, com uma inteligência inigualável e um exímio lutador. Um super-herói sem superpoderes. O Coringa, por sua vez, só tem a loucura. Sua realidade está mais próxima de você e eu do que do Batman e da família Wayne.

Pudesse dividir o filme, o faria em três atos: Depressão, ansiedade e absurdo. Os dois primeiros se confundem e se alimentam – bem como estes dois transtornos psíquicos – em quase duas horas de tela retratando ambientes sujos, decadentes, onde um amarelo ocre escurecido, perpassado, em alguns momentos, por um melancólico azul infante, domina as cenas durante as duas primeiras metades do filme, ao passo que o inocente e fragilizado Arthur cuida da mãe doente, tem delírios românticos com sua vizinha, sente o abandono do serviço social que corta sua assistência psiquiátrica e que impede seu acesso aos sete remédios controlados que toma. A risada característica do personagem aqui é explicada por um distúrbio, provavelmente advindo de traumas da infância, quando era abusado pelo seu padrasto, assistido pela mãe paranoica esquizofrênica. Leva surras de crianças enquanto trabalha como palhaço e depois, preso no vagão do metrô com três yuppies do mercado financeiro. Nessa segunda ocasião atira nos agressores, matando-os, são as três primeiras mortes das sete do filme. Uma para cada remédio perdido.

A história é linear, sem as reviravoltas mirabolantes no enredo, muito comuns nos filmes de super-heróis atuais, uma vez que o Arthur reage matando os três playboys e passa a se tornar um símbolo misterioso das classes menos favorecidas, que assumem a máscara de palhaço em protestos de um movimento vagamente tratado por “Kill the rich”. A escalada da perversão do comediante, indigno de se tornar bem-sucedido nas comédias stand-up, ambiente onde aspirava prosperar, mas não conseguia sequer entender tal humor, marca o passo do último terço do filme. Ao descobrir que seu passado era mais trágico do que supunha e que sua mãe havia acobertado sua história, acaba por assassiná-la. Depois atira na cabeça, ao vivo, de seu apresentador de tevê favorito, que o convidara para participar do programa de entrevistas, o mesmo TV host com quem Arthur tinha delírios, nos quais o via como pai. A morte dos pais, efetiva e não no sentido figurativo posto por Freud, marca sua passagem para a vida adulta, é a morte de sua inocência que consolida seu arco de transformação.

Conforme o último ato se desencadeia, o filme se torna mais colorido, os ambientes se ampliam e surgem menos opressivos, ainda que nada na vida do protagonista tenha melhorado, para finalmente, nas últimas cenas, nos transportarem para um cenário inédito no filme, branco e límpido, com o Coringa rindo um riso relaxado e satisfeito, diferente de todos os anteriores. Arthur Fleck, quando performa sua entrada triunfal no programa de entrevistas, já assume sua versão adulta, confiante e decidido a ser uma manifestação extrema de uma tendência da sociedade excludente em que vive. As normas sociais já não fazem mais sentido e, ao que tudo indica na narrativa, nesse momento ele percebe que nunca fizeram, estimulando suas ações que tomam proporções cada vez maiores, inacreditáveis, absurdas. A transmissão do assassinato de um apresentador de tevê popular, representante do status quo coroado pela mídia, é o combustível para o desencadear violento e extasiado da desobediência civil em Gotham, que faz com que o palhaço se torne símbolo e depois ídolo de um movimento, não de justiça social, mas de ressentimento por uma sociedade cínica e desumana. Os contornos absurdos da obra podem ser sentidos nas salas de cinema. Gargalhadas acompanham um anão assustado tentando fugir do apartamento, após o protagonista macetar e abrir a cabeça de um desafeto na parede. Do que estamos rindo mesmo?

“Numa esquina qualquer, o sentimento do absurdo pode bater no rosto de um homem qualquer. Tal como é, em sua nudez desoladora, em sua luz sem brilho, esse sentimento é inapreensível”. Para Albert Camus, a existência em um mundo cruel, por si só, é o absurdo. A aleatoriedade, a sucessão de fenômenos improváveis, a indisposição ao equilíbrio dos pesos e balanças, a insignificância cósmica. Existir é o contra-senso, o absurdo. Portanto, para Camus, só existe uma questão filosófica realmente importante: vale a pena viver ou não? Arthur leva isso em consideração ao se preparar para sua participação no talk-show, encenando dar um tiro na própria cabeça como sua piada final. Por fim, se aproxima mais ainda do absurdismo de Camus ao considerar olhar diretamente nos olhos do absurdo, cara-a-cara, e seguir vivendo, experienciando o absurdo, alheio ou completamento imerso nas consequências de seus atos como Mersault, personagem principal de O Estrangeiro.

O revanchismo de Arthur ao matar aqueles que o fizeram mal envolve o espectador em um senso de justiça torpe, não à toa, o filme tem levantado polêmicas e colecionado admiradores e críticos, independente do espectro político, podendo ser visto, por um lado, como um elogio à rebeldia, à revolta em um sistema cínico e indiferente que sustenta uma desigualdade absurda e por outro, como a romantização das ações de um loner, um incel, um desses teorroristas que promovem tiroteios em massa. Em tempos de quebras de paradigmas, de valores e de costumes, em uma sociedade ultraconectada, com pensatas de emancipação consolidando a cultura woke, vigilante e ativa, temos uma produção hollywoodiana sendo aplaudida de pé em circuitos internacionais e salas de cinema comerciais. O que essa simpatia distópica nos diz sobre nossa realidade atual? Aldous Huxley dizia que toda distopia é baseada no momento em que o autor que a cria vive. Deixar de assistir ou exibir o filme não resolve os problemas que a sociedade cria, como gostariam de imaginar alguns críticos, existindo miséria e desigualdade em uma sociedade que desconhece a alteridade, o Coringa continuará sendo uma das faces mais persistentes e ubíquas da cultura.

*Leonardo Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura 
Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG). 

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