Por Leonardo Roberto*

A caracterização da elite brasileira (e da classe média que se enxerga elite) e de seus valores contemporâneos têm no Brasil colônia e, mais notavelmente, na vinda da corte e no império, explicações e/ou sugestões plausíveis. A começar pela desigualdade impressa na relação histórica de produção entre os donos de terras e seus vassalos. Da casa grande e da senzala. Os donos de capitanias e das primeiras sesmarias, os latifundiários escravocratas, donos das “lavouras parasitas da natureza”, ao longo dos 3 séculos coloniais, tiveram pouco ou nenhum contato com a educação, secular ou religiosa. Em geral, as classes dirigentes luso-brasileiras eram apartadas das elites onde nascia e era cultivado o ideal de alta cultura ocidental.

A propensão para as artes da casa grande e da senzala se equivalia, quando não raro se visse os afro-brasileiros ligados com mais afinco à comemoração de seus costumes, enquanto o dono de terra morava (mora?) no mundo bidimensional do ouro e do chicote. Abastados sortudos, filhos da aristocracia colonial, de comerciantes e de fazendeiros, em alguns poucos casos, iam até Coimbra receber estudo formal. Essa é a exceção, a regra era o iletramento e o caráter ágrafo.

As etnociências, os costumes e o conhecimento da fauna e flora pelos nativos só era aceito quando inadvertido, como na culinária e na medicina. Tampouco havia a educação ocidental de maior prestígio. Ainda que houvessem iniciativas para a criação de instituições da ciência, principalmente por parte dos jesuítas, foi só com a chegada da corte, no século 19 que se estabeleceram as bases do progresso científico e educacional no país. Antes disso, o estudo da filosofia (ou ciência) natural era a afronta mor ao que hoje chamamos de criacionismo, condenada pela ordem jesuítica, à época, responsável pela educação na colônia através de suas missões. Ainda assim, a Ordem de Jesus era o que melhor representava a educação e até mesmo ciência na colônia. Por mais que imperassem os dogmas religiosos, projetava-se uma integração da sociedade nativa por meio dos estudos e da catequese. A tímida educação a cargo da ordem no país (no auge foram 17 missões ao longo de todo o território nacional de acordo com o padre Serafim Leite) foi esmagada por supostos heróis, os bandeirantes, a serviço da elite rural. Não é exagero pensar nesses sertanistas, tropeiros, estancieiros, latifundiários e seus representantes como bárbaros analfabetos.

Isso pode ser rastreado a partir de estigmas presentes nos dias de hoje. Na ideia do “gaúcho gay” — principalmente entre os pelotenses — que surge quando os estancieiros do sul do país mandavam seus filhos para estudar na Europa, principalmente na França e estes voltavam com outros hábitos de higiene, relacionavam as condições sanitárias a doenças, advertiam para os perigos de comer sempre com a mão ao invés de usar talheres, sendo assim tachados como pouco másculos. Os modismos e vestimentas, como camisas com golas, também era malvistas pela sociedade gaúcha na época que era, digamos, rústica.

Não sejamos injustos esquecendo do letramento promovido por outras ordens religiosas que tentaram suprir a ausência do estado na educação, como quando o clero secular, espontaneamente, foi responsável pela alfabetização desses girinos da burguesia nacional, condicionada, é claro, pelos valores católicos, levando a moral cristã dogmática para os primeiros cidadãos do bem, principalmente entre as moças, lapidando a moral sexual conservadora da chamada família tradicional.

Até mesmo o maior movimento de emancipação das ideias, que navegou por todos os oceanos do globo, vem para o Brasil de uma forma particular, com as reformas pombalinas, que procuraram instituir o ensino leigo e modernizar a educação, mas nunca atingiram sequer as elites e quanto mais o povo. A primeira reforma na educação nacional, iluminista à pombalina ou à brasileira, fracassa e a educação retrocede ao ensino religioso. Isso no final do século 18. As colônias espanholas, nesse momento, já contavam com mais de uma dezena de universidades, sendo a primeira criada na primeira metade do século 16 em Santo Domingo.

Quando o Brasil se torna sede do reino unido de Portugal, na vexatória fuga da corte imposta pela sinuca de bico criada com o bloqueio continental, surgem as primeiras instituições da ciência e da cultura. Academias militares, faculdades, bibliotecas, museus, óperas, jardins botânicos. Nenhuma universidade, entretanto. O desespero do rei para modernizar o país e elevar sua cultura faz com que a corte e, posteriormente, o império, emitam mais títulos de nobreza do que havia ocorrido nos três séculos anteriores em Portugal. Assim, sem muito critério, a nobreza incha, surgem as castas brasilóides.

Sergio Buarque de Hollanda cunha o termo “bovarismo”, inspirado na Madame Bovary, do romance de Flaubert, para falar do brasileiro que acredita ser o que não é. A angústia do não-ser, o “invencível desencanto em face das condições reais”. A emoção baseada no imprevisto do futebol, a meritocracia deturpada. O destino manifesto. Deus é brasileiro. “Instinto Caraíba, elites vegetais”. “Só não há determinismo onde há o mistério. Mas o que nós temos com isso?”.

A ânsia bovarista da elite pode ser traduzida também no fracasso das chamadas “missões francesas”, encomendadas por D. João VI, reunindo renomados artistas e intelectuais franceses para promover a cultura de vanguarda, estritamente ocidental, é verdade, mas revolucionária nos campos da literatura, das artes plásticas, da arquitetura, da dramaturgia e da música. É bem documentado que só a música foi abraçada pela elite artificial, não por uma sensibilidade estética acurada, mas, provável, que por um motivo mais visceral, do sangue índio e negro renegado, que corre nas veias da grande maioria do povo, em todos os extratos sociais, o que a elite faz questão de esquecer. Vestígio ocultado da essência de um país, que, logo de cara, começa com uma dança transcendental entre marinheiros e os índios naquele distante e límpido litoral Baiano, rodopiando e cantando, abraçados, no ano de 1500.

Outro relato atemporal retrata nossa pretensa elite: Quando a corte desembarca no Rio de Janeiro, as mulheres da nobreza, dentre elas, Carlota Joaquina, surgem carecas e/ou vestindo turbantes devido a uma infestação de piolho nos quase dois meses de travessia marítima. As damas da high-society carioca se prontificam a seguir a suposta moda europeia e era comum, em meados de 1808, ver as senhoras da elite ostentando suas brilhantes, ou melhor, reluzentes, cabeças raspadas, ao que supunham ser a vanguarda estilística europeia. Chic.

E aqui estamos nós, mais de 200 anos depois. As proles das mesmas senhoras que ostentavam criados (quanto mais deles, melhor) nas missas e concertos da capela real e dos agrolords (o agro é pop) que apertaram o estado até o ponto que o Brasil se tornasse o último país a abolir a escravidão, protestam contra a balbúrdia, compartilham pelo Whatsapp provas irrefutáveis dos absurdos nas universidades públicas, alertando que, pasmem, circulam nos campus sindicalistas pessoas peladas, desnudas, “sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas”. Alguns regozijam ao ouvir a pastora Damares dizer que a educação degringolou quando a igreja evangélica perdeu espaço e deixou a Teoria da Evolução entrar nas escolas. Aplaudem o messias que calça os chinelos e vai buscar o celular para cravar que há de se privilegiar cursos de retorno imediato. Manifestantes são idiotas úteis (Não adianta voltar atrás, presidente). Por que não um ministro evangélico no STF? Os militares salvaram o país do comunismo em 64, vamos reescrever os livros de história. Denunciem seus professores doutrinadores. Holocausto? Podemos perdoar mas não podemos esquecer. Pode estudar filosofia? Pode! Mas com dinheiro próprio. Nazismo é de esquerda! “Mas Chanceler, a embaixada alemã disse que não”, “COMUNISTAS!!”. “O Museu Nacional precisa de dinheiro para se recuperar, madame Safra! Pois então envie 40 milhões de reais para Notre Dame.” O papa é comunista. Os portugueses nunca nem puseram os pés na África, quem fazia o trabalho sujo eram os próprios africanos. “Crianças, temos aqui 100 chocolatinhos, vamos tirar três… pera aí, ô presidente, não come agora não”. Olavo de Carvalho. Olavo de Carvalho. O L A V O D E C A R V A L H O. Se meu cu falasse, certamente teria a voz do Olavo. Terra plana. Tudo pequeninho aí? Sim, tudo! Somos governados pela pequenez. Elizabeth Guedes, irmã do posto ipiranga, é presidente da Associação nacional das universidades particulares, mas não tem nada a ver, meu. O Paulo Guedes tem investimento em fundo de educação… e daí? No alto dos meus delírios conspiracionistas lembro que a Damares firma parceria com universidades particulares para prevenção de suicídio entre os estudantes, dias depois do anúncio dos cortes. Que lindo! Só não entram estudantes de universidades públicas nesse pacto, esses não precisam, já que são tão raros os casos de depressão na pós-graduação e entre pesquisadores. Universidades públicas produzem mais de 90% das pesquisas no país mas o decrépito de língua presa balbucia sobre os resultados do PISA.

O estado gasta muito! Déficit fiscal. Reforma da previdência já! Como disse Onyx Lorenzoni, tem que segurar a cervejinha no final de semana pra pagar o vestido de debutante da filha no fim do ano. O Brasil gasta demais com educação, mas tem sobra pra deixar passar a dívida de 17 bilhões do agronegócio, pra reverter multa ambiental, pra ignorar os 426 bilhões não repassados — de empresas pequenas como o Bradesco, a Vale, a Caixa, a JBS — ao INSS. Tributar igreja então, nem se fala, nem se pensa porque é pecado, obra do demo, mesmo que a igreja católica, tão pobre (e tutora dos pobres), coitada, tenha simplesmente o maior patrimônio imobiliário do mundo, sem contar as obras de arte e seu conglomerado midiático. Não vou nem me indispor a falar sobre os pastores evangélicos. Nem da reforma da previdência, que tem dado tão certo na Argentina. Brasil e Estados Unidos acima de tudo, Estados Unidos acima de todos! Lembre-se: se quiser vir aqui e transar com uma mulher, fique à vontade!

Mas não é corte, é contingenciamento! Ahã. Na volta a gente compra. Vou botar só a cabecinha… e viveram felizes para sempre!

*Leonardo Roberto é estudante de mestrado no programa de Estudos de Cultura 
Contemporânea na Universidade Federal do Mato Grosso (ECCO-PPG). 

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