Por Leandro Noronha*

Me deparei com uma crônica de Clarice Lispector publicada no Jornal do Brasil em 1967, intitulada “Daqui a vinte e cinco anos”. Nela, a escritora discorre sobre o que espera do país neste período. Se mostra esperançosa e enxerga na população maturidade para conduzir o destino político brasileiro. Mas também critica a fome, desejosa de que a pobreza e a subnutrição deixassem de ser realidades.

A fome denunciada por Clarice não findou até hoje. Apesar de diversos avanços sociais e políticos conquistados nos últimos vinte anos, como as políticas de distribuição de renda, de ampliação do acesso às universidades públicas, de acesso à saúde pública e gratuita, entre outros, as desigualdades sociais no Brasil se aprofundam cada vez mais.

Ilustração Leonilson

Cinco décadas depois e cá estou me propondo a fazer o mesmo exercício de Clarice: o que será do Brasil daqui a vinte e cinco anos?

Imaginar o futuro é um exercício complexo e necessário. Complexo, pois existe uma força entre o que se vive no concreto e a incerteza do amanhã. Necessário, pois nos arranca da comodidade das supostas certezas da vida e nos lança ao universo do desejo.

Projetar o futuro em tempos de pandemia torna a tarefa ainda mais difícil. Um fenômeno global como este vivenciado propõe reflexões da altura de sua dimensão. Nos leva a ampliar a compreensão para além de nossos limites geográficos, linguísticos, sociais e culturais. Em movimento contrário, também nos impele a olhar para o que existe de mais local em nossas vivências.

Ilustração Leonilson

Daqui a vinte cinco anos ou depois penso que teremos, ao menos por algum tempo, dado valor às relações sociais e ao afeto. Os reencontros serão mais profundos, com mais brilho nos olhos. A vontade de estar com o outro, de ouvir e ser escutado, poderá ser um ponto de partida para o exercício da alteridade.

Daqui a vinte e cinco anos ou depois o país irá retomar as rédeas da democracia. Será mais crítico, confiará em menos mentirosos e compreenderá a importância da participação política. A sociedade brasileira, cada vez mais, vai reivindicar direitos e melhorias sociais, e a dignidade humana será respeitada em sua integridade.

Ilustração Leonilson

Daqui a vinte e cinco anos ou depois seremos mais pacientes conosco e com os outros. Compreenderemos a importância do silêncio e da escuta. Veremos o ambiente online como ferramenta de interação, mas não como aprofundamento afetivo. Será valorizado mais um café presencial do que um áudio no WhatsApp.

Daqui a vinte e cinco anos ou depois o Brasil passará por grandes transformações. Todos os espaços políticos serão ocupados como forma de ampliar a voz de quem foi historicamente silenciado. A valorização dos direitos humanos guiará todas as políticas públicas e as desigualdades de raça/cor, gênero, sexualidade e classe serão crescentemente enfrentadas por todos os setores da sociedade.

Utópico? A utopia nunca foi problema para quem se acostumou a sonhar. Muito provavelmente a maioria das coisas que desejo para daqui a vinte e cinco anos não se realizarão. Talvez o individualismo e a arrogância continuem permeando as relações sociais; talvez a sociedade continue acreditando em mentiras e seguindo inerte durante o curso catastrófico que toma o país; talvez continuaremos reféns do universo online para criar e estreitar laços afetivos; talvez a pobreza nunca acabe e o grito das pessoas excluídas seja sempre um eco perdido.

Ilustração Leonilson

Sonhar não precisa ser antônimo de praticar. Não precisamos esperar mais de duas décadas para mudar o que se deseja. Transformar as relações sociais desde já é algo possível e que pode ser desenvolvido no cotidiano. Apontar e corrigir mentiras é uma ética que deveria ser compartilhada em unidade. Denunciar as desigualdades sociais é fundamental para que o país nunca se esqueça de que poucos têm muito, e muitos têm pouco. Daqui a vinte e cinco anos ou depois quero que nossas utopias estejam nas ruas. 

*Leandro Noronha da Fonseca é jornalista, escritor e especialista em Mídia, 
Informação e Cultura pelo Centro de Estudos Latino-americanos sobre Cultura e 
Comunicação - CELACC da ECA/USP. Mestrando em Letras/Estudos Literários pela 
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS. É artista-criador no Coletivo 
Contágio (@coletivocontagio).

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