Cuiabá, ano de 1983, quase 84. Os finais de semana eram uma festa de cinema, cardápio de primeira, cinema de arte, galera animada e antenada. O Batatão era o Auditório da Agronomia, lugar de cinema, lugar de cineblubismo, lugar do Cineclube Coxiponés. Aliás, foi onde lancei meu primeiro vídeo, totalmente independente, PX 110 Mhz, em sessão dupla, ao lado de O Limite de Mário Peixoto. Sala lotada. Achei que a lotação da sala de projeção improvisada era pelo filme do Mário Peixoto, mas não, quando iniciou a projeção de O Limite, depois do PX 110 Mhz, a sala se esvaziou. Fiquei entre orgulhoso e apreensivo, puxa vida, o filme do Mário Peixoto é uma obra de arte, projetado pela primeira vez em Cuiabá, considerado, ao lado de o Encouraçado Potenkim, de Einsenstein, como um dos melhores filmes de todos os tempos.

Glauber Rocha, cinema, política e poesia

Mas, o Cineclube Coxiponés era ponto obrigatório, filmes de Herzog, Buster Keaton, Godard, Wim Wenders, Fritz Lang, Glauber Rocha, Fassbinder, Bressane, cinema udigrudi, Boca do Lixo, rapaz, o cinema de arte brasileiro e mundial passava por ali. Uma festa. Uma fresta para assistir a filmes impensáveis nas salas de cinema comercial. Depois, longas conversas nas mesas dos bares do bairro Boa Esperança, Bar do Léo, Bar do Japonês, Money Money…um momento maravilhoso na vida cultural da cidade de Cuiabá.

Foto de Arquivo: Clóvis Matos

Os gestores, operários da arte, agentes culturais em questão, que tocavam o cinema pra frente eram o Clóvis Matos, Bené e Epaminondas. Sob a batuta intensa de Marília Beatriz na coordenação de cultura da UFMT. Não esquecendo da Rosângela Calix, que assessorava a professora Marília e mais tarde se tornou figura de proa no Instituto de Linguagens e departamento de Artes da universidade.

Reunião Coordenação de Cultura UFMT

O cinema lançando luzes de sínteses poéticas, políticas, estéticas e filosóficas, o cinema já foi o lugar das grandes questões políticas, uma arte de resistência e de vanguarda estética. Pelas características do próprio meio o cinema é a arte da síntese que, sem saudosismo algum, provocava encontros globais e reflexões intensas de grande repercussão nos debates políticos. A prática cineclubista se espalhava pelas universidades do país. O Coxiponés era nossa conexão com essa forma de experimentação política e estética. Não estávamos longe do que havia de representativo na história do cinema, ao contrário, buscávamos as referências importantes da cultura global para conectar ao local.

Reunião Cineclube Coxiponés, anos 80
Cartaz de O anjo Nasceu, 1967, de Julio Bressane

Os gestores eram abertos para compartilhar a programação, acatavam sugestões e propostas. Quando por exemplo fizemos uma sessão dupla no  auditório do CCET, projetando o filme O Anjo Nasceu, de Julio Bressane, e em seguida uma performance do Caximir regado a muito rock’n roll. Cinema, performance poética com rock e atitude. A galera não estava para brincadeiras. Existia uma tensão política cultural forte de rupturas e recomposições, a cultura urbana que se alargava provocava estranheza. Mas, sempre se ativou mais e mais em todas as (des)direções.

O Bar e Pizzaria Obelix, também no Boa Esperança, que era o abrigo roqueiro da cidade, que se desenhava com zines e HQs, também foi palco de projeções de cinema, performance e rock. Rolou uma parceria bacana do Coxiponés com o bar Obelix. Mas, a ação do Cineclube se estendia para além de Cuiabá, ía até as comunidades rurais, os caras pegavam os equipamentos e circulavam pelos lugares mais remotos no interior de Mato Grosso. Arte e ação política cultural, Clóvis sempre teve essa característica, de circular, propiciar o contato das pessoas com o cinema. Continua a circular até hoje distribuindo livros.

A euforia da luta pela redemocratização do país foi um sentimento crescente naqueles anos oitentistas, a ditadura se abria aos poucos, se sabia terminal, os movimentos populares se inflavam e se inflamavam, as universidades federais, os movimentos secundaristas, movimentos dos operários se organizando e fortalecendo os sindicatos, o Brasil se mexia nas hostes populares, a arte era um meio de expressão forte e ecoava por todos os cantos e recantos da criação estética, nos teatros, no cinema, nas artes em geral.

Brasil, Brasília, DF, 23/04/1984. Manifestação pedindo eleições diretas (Diretas Já) em Brasília (DF). Foto: Arquivo/AE

Cuiabá se assemelhava, entrava na onda. A cultura urbana expandia novas formas de comportamento e incorporava elementos urbanos conectados a uma liberdade de experimentação que inovava por aqui.

 

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