Por Jorge Ialanji Filholini*

Todas as manhãs, o Sol tinha que escalar o céu até alcançar o cume da montanha para conseguir, finalmente, esticar-se todo e abraçá-la.  Então, com a ajuda do vento, soprava a noite e com os raios, como se fossem pincéis, misturava todas as cores que o arco-íris lhe emprestava e devolvia às árvores e às casas, aos caminhos, às pessoas e aos outros animais da aldeia as cores que a noite apagara.

E era também naquela aldeia que mais tarde anoitecia. Já a noite se aninhava no colo do vale, ainda na aldeia ecoavam as pegadas esfarrapadas do Sol a esboroar-se por detrás da montanha virtual de algodão tingido, que lá ao fundo do horizonte ardia.

Labaredas de fumo sarapintado jorravam então da cratera escancarada do vulcão imaginário que se escondia dentro dela, e escorriam à deriva pelo firmamento desbotado. Até que, por fim, com um derradeiro sopro, o vulcão se extinguia e o fogo se apagava.

(O caçador de ossos)

Desde 2016, a série Contos de Moçambique vem sendo publicada no país pela editora Kapulana. Trata-se de um projeto em conjunto com a Escola Portuguesa de Moçambique (EPM), tendo como objetivo divulgar no Brasil as histórias das tradições orais moçambicanas. Nos meses de fevereiro e março chegaram às livrarias as obras Na aldeia dos crocodilos, de Adelino Timóteo, e O caçador de ossos, de Carlos dos Santos.

Originalmente publicados em Moçambique, os livros revelam as riquezas das expressões populares, por meio de contos que inspiram o imaginário infantil e ampliam o conhecimento das culturas africanas. A série apresenta histórias tradicionais recriadas com narrativas que revelam os múltiplos universos do país. Além dos textos, as páginas acompanham ilustrações de artistas moçambicanos e suas diversas manifestações, como as pinturas a óleo de Silva Dunduro em Na aldeia dos crocodilos e as esculturas maconde de Emanuel Lipanga na composição de O caçador de ossos.

As obras

Em Na aldeia dos crocodilos, Mandoguinhas e seu avô Boaventura vivem na localidade que dá título ao livro: uma terra fértil, onde tudo que é semeado cresce. O avô conta ao neto que os crocodilos que ficam na beira das águas não são animais, mas ubuntus (gente). O menino acha que o avô está alucinado devido à velhice, mas quando Boaventura desaparece no rio, Mandoguinhas tem que desvendar o mistério dos crocodilos. O conto foi inspirado no Vale do rio Zambeze, uma região em Moçambique onde ocorrem diversas manifestações tradicionais, sendo uma delas a da encarnação humana nos crocodilos. No relato sobre o livro, o autor Adelino escreveu:

“Na minha infância ouvi várias vezes contar essas histórias. Foram as que mais prenderam os meus sentidos. […] inspiraram-me a escrever este conto, a partilhar convosco este lado desconhecido de vidas paralelas (terra e rio) e que tornam Zambeze não só um vale rico e fértil, como também uma fonte que poderá alimentar novas gerações, e, quiçá, motivá-las à descoberta e à divulgação de contos tradicionais genuinamente moçambicanos, da memória e da autoria coletiva do povo moçambicano”.

A obra é ilustrada com as deslumbrantes pinturas a óleo de Dunduro.

Naquela terra junto ao rio, tudo o que se planta dá frutos. Toda a semente germina. O sol que nas margens do rio se espalha no corpo da terra viria a trazer de volta os homens um dia desaparecidos.

No dia em que Mandoguinhas tomou posse do reino, a avó Sasseka ungiu o neto, novo chefe, com óleo de rícino. Com este óleo mágico, Mandoguinhas benzeu, a conselho de Mulungu, todos os presentes.

Aqueles que se disfarçavam de humanos tomaram um a um a forma de crocodilos e abandonaram a sala, desmascarados.

 (Na aldeia dos crocodilos)

Já no volume 8, O caçador de ossos, Carlos dos Santos narra a história de Sinaportar, reconhecido como um grande caçador de sua aldeia. Sua fama era de egoísta e solitário, pois negava-se a caçar em grupo, sendo acompanhado apenas dos cachorros que havia herdado do pai, antigo e lendário caçador. Mas Sinaportar guardava um segredo da aldeia: ele não era caçador e dependia totalmente dos cães para capturar as presas. Certo dia, inesperadamente, os cães passam a se negar a caçar. Diante disto, Sinaportar deverá resolver a situação antes que o seu segredo seja revelado. Carlos retrata a trajetória do crescimento humano com temas que abrem discussões sobre as consequências das mentiras e o individualismo. “Este conto talvez seja a mais importante de todas as lições: que é saber aprender das ações dos outros do que querer ser melhores do que eles”, relatou o autor. As esculturas de Lipanga desenvolvem as dinâmicas do enredo e estampam as tradições artísticas moçambicanas.

Contos de Moçambique

A série Contos de Moçambique surgiu da colaboração entre a Escola Portuguesa de Moçambique e a Fundació Contes pel Món, de Barcelona, Espanha. A Editora Kapulana fez uma parceria com a Escola Portuguesa de Moçambique para publicar no Brasil a coleção, com o objetivo de apresentar ao leitor brasileiro um pouco da cultura moçambicana. A série é composta por dez volumes de contos da tradição oral de Moçambique. São histórias recontadas por renomados escritores e ilustradas por artistas de diversas expressões, como pintura, desenho, escultura, batique e artesanato.

Os autores

ADELINO TIMÓTEO – Nascido em 1970, na Beira, Adelino Timóteo é jornalista, artista plástico e escritor, destacando-se os livros Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique (Poesia, edição da Ndjira, do Grupo Leya – prêmio Nacional Revelação AEMO) e Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida (Poesia, 2011, Alcance Editores – prêmio BCI-2011). Como artista plástico, Adelino realizou várias exposições individuais de artes, tanto em Moçambique quanto no estrangeiro.

CARLOS DOS SANTOS – Nascido em 1962, em Lourenço Marques, hoje Maputo, capital do país, Carlos dos Santos é profissional da educação desde 1981 e formado em Psicologia e Pedagogia (1989-1994) pela Universidade Pedagógica de Maputo. Carlos tem artigos publicados em vários jornais de seu país, além de poemas com o pseudônimo de Nyama.

Os artistas

SILVA DUNDURO – Nascido em 1964, no distrito de Buzi, província de Sofala, Silva Dunduro é Ministro da Cultura e Turismo de Moçambique e vive em Maputo, capital do país. Entre 2008 e 2009, fez estudos de Mestrado no Brasil e trabalhou com a pintora Maria Do Karmmo, em seu atelier, no Rio de Janeiro. Desde 2012 tem participado de várias exposições coletivas em Moçambique (Beira, Chimoio, Maputo e Tete) e no estrangeiro (Itália Namíbia, Portugal, Suécia, entre outros).

EMANUEL LIPANGA – Nascido em Nangade, Cabo Delgado, em 1967, Emanuel Lipanga estudou na Tanzânia, em Ntwara. Em 1982, Lipanga foi para Dar es Salaam, onde aprendeu com o seu tio o ofício de escultor. Participou da Exposição de Artes da TDM (Telecomunicações de Moçambique), em 2001. além de já ter apresentado o seu trabalho artístico na China, em 2008.

*Jorge Ialanji Filholini nasceu na cidade de São Paulo, em 1988, mas reside há mais 
de 20 anos em São Carlos, interior do estado. Cofundador do site cultural 
“Livre Opinião – Ideias em Debate”. É um dos curadores do Festival Gaveta Livre, 
evento literário e teatral realizado em São Carlos. Fez parte, ao lado do escritor 
Marcelino Freire, do projeto Quebras, como produtor e assistente de multimídia. 
Participou da antologia, lançada em novembro de 2015, com textos e fotografias 
que desenvolveu durante a sua viagem pelo projeto.

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