Como disse o poeta Antonio Carlos Lima, vulgo Toninho Caximir, “depois de todo trinta e um de março vem sempre um primeiro de abril”; o  próprio calendário acusa. Quando se fala da mordaça que se adequou ao regime e aos direitos individuais, encontramos na arte um pouco do que foi a resistência: parangolê, meu irmão! Mas não falemos apenas das metáforas de Chico Buarque, do universo alegórico da Tropicália, das obras emblemáticas de Rubem Fonseca, sobretudo seu “Feliz Ano Novo”.

No vasto campo da literatura frutificam inúmeras representações que evocam aqueles tempos. Sempre é bom lembrar que para cada momento de impertinência dos ocupantes do poder, há uma espécie de renovação estética que garante musculatura aos artífices do campo das artes. “Zero”, de Loyola Brandão, “O que é isso, companheiro”, de Fernando Gabeira, “Carbonários”, de Alfredo Sirkis” são algumas dessas pérolas que deveriam povoar as galerias de bibliotecas públicas e privadas quando o assunto é ditadura militar.

Limitar qualquer acervo de representações desta ordem é despovoar nosso imaginário da necessidade de se refletir sobre acontecimentos bruscos que interrompem o curso natural das coisas, da evolução do homem, do mergulho em um tempo de contestação e busca por garantias ao que nos tem sido retirado aos poucos. E nesse cenário vão surgindo coisas interessantes. O novo romance de Joca Reiners Terron é uma dessas referências.

“Noite dentro da noite” é uma obra densa que perpassa o meio liquefeito de que se compõe a colcha de retalhos da ditadura em solo latino-americano. Nas palavras do editor, que margeiam as orelhas do livro, define-se o campo de atuação da escrita:

Estamos em meados dos anos 1970, auge da ditadura militar, e o clima de violência parece ter contagiado a nova escola do garoto. Sob a mira constante de um grupo de alunos mais velhos, ele sofre agressões inimagináveis, enquanto suas memórias e impressões se tornam cada vez mais borradas e difusas. Marcado por um ato de violência extrema, o garoto cresce incerto de seu passado, e em direção a um futuro que ele não parece compreender (TERRON, 2017).

Do esquecimento à lembrança, o itinerário atravessa Mato Grosso e Paraná enquanto reproduz um duplo que liga o regime militar brasileiro à Segunda Guerra Mundial. Experimentações químicas recortam o imaginário do leitor junto a sequestros, assassinatos, desaparecimento de corpos, maus tratos infantis e demais ingredientes que criam um thriller de suspense dentro do moto contínuo em que o narrador coloca o leitor. Um estado permanente de tensão percorre o calhamaço de 463 páginas de quem você quer se livrar sem pular as páginas, mas também retido nas malhas de um texto veloz e furioso como a geada de 1975 que assolou o sul do Brasil. “Por isso esta história está em pane. O tempo congelou, e o início e o final dela se embaralham” (TERRON, 2017, p. 24).

Mas o romance não espreita de soslaio apenas o que foi a expropriação da liberdade em solo brasileiro. O livro aborda inúmeras questões do que veio a ser essa Brasil moderno. Cuiabano de nascimento, o autor propõe uma discussão sobre o fato de Mato Grosso ter se tornado o chamado celeiro nacional. E suas vertiginosas metáforas dão nome aos bois, sobretudo no que se refere ao que dá sustentação à economia local e faz o Produto Interno Bruto crescer, feito fermento em meio a esse bolo solado em que o país está se tornando, senão vejamos: “Por quilômetros você observou as colheitadeiras que pastavam no horizonte como bichos pré-históricos, uns dinossauros avermelhados pelo sol do Mato Grosso devorando florestas do futuro” (TERRON, 2017, p. 73).

Até mesmo para não cair na denúncia barata, em um frívolo comentário panfletário de que se nutrem escritores de pouca imaginação, Terron caprichosamente sai em busca de atenuantes estilísticos, como se observa no fragmento a seguir: “Não sabiam que seu companheiro caíra numa emboscada na noite anterior e àquela altura recitava no pau de arara um a um os nomes dos rebelados, além de indicar seu paradeiro” (TERRON, 2017, p. 120).

Em 2018, às vésperas de mais uma eleição, com a Copa do Mundo escancarada para ocupar as mentes do povo brasileiro com a fetichística elucubração de se conquistar o hexa, este livro de Joca Terron merece estar no podium, garantir alguma medalha no ranking de obras bem escritas, penetrantes e imprescindíveis de se conhecer. Sobretudo pelo recrudescimento em que a liberdade de expressão tem sofrido e a ameaça de governos mais autoritários e impertinentes chegarem com força, pelo que se vê das pré-campanhas eleitorais.

Faz-se necessária essa reflexão, pois já não é sem tempo. Que os golpes de 1964 e o de agora sejam em pouco tempo apenas referência histórica e possamos ultrapassar essas fronteiras para além do esquecimento. É Preciso se olvidar, mas para que não restem dúvidas quanto a essa necessidade, um pouco de leitura e esclarecimento só nos fará bem. “Noite dentro da noite” nos tira um pouco desse poço sem fundo que tem se tornado a realidade brasileira nos últimos dias.

REFERÊNCIAS

TERRON, Joca Reiners. Noite dentro da Noite. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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