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Mãe e filha nos esperam na frente de casa. Pedimos licença. Que bom estar aqui, como vão?, vamos bem, entra, fica à vontade, quer suco de acerola?, claro, muito obrigada. Eu e minha mãe passamos pelo portão. Assim, as quatro mulheres, as duplas de mães e filhas se acomodam nas quatro cadeiras estrategicamente posicionadas e se encaram, sorridentes. Damos início à entrevista com as coletoras de sementes de Nova Xavantina (MT), Milene Alves de Oliveira, 18, e Vera Alves da Silva de Oliveira, 46, do projeto Rede de Sementes do Xingu, organizado pelo ISA (Instituto Socioambiental).

Criada em 2007, a rede teve como principal objetivo disponibilizar sementes da flora regional para restauração de áreas degradadas na região mato-grossense da Bacia do Rio Xingu. Ao longo dos anos, formou-se uma extensa plataforma de troca e comercialização dessas sementes. Isso tem gerado renda aos agricultores familiares e às comunidades indígenas participantes, além de um intercâmbio entre coletores, viveiros e proprietários rurais. Foi também uma oportunidade que mãe e filha encontraram para estarem mais próximas uma da outra e trabalharem juntas.

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Vamos ao trabalho!

O processo envolve cinco etapas: coleta, extração (retirar a semente do fruto), beneficiamento (limpeza, classificação e separação da semente), secagem e armazenamento. “A gente escolhe as nossas matrizes e monitora elas; tem que ver qual que é a melhor época de floração, de frutificação. A gente também tem o calendário da rede e com o auxílio dele a gente organiza a nossa coleta pra daí não tirar fruto passado da hora e perder o ponto de maturação”, explica a estudante Milene. Um dos critérios é deixar 30% dos frutos nas árvores para manter a dispersão e a regeneração das espécies.

Sementes de jatobá
Sementes de jatobá

Os coletores organizam-se em grupos. Cada grupo e núcleo possui um responsável, chamado de elo, que realiza reuniões de avaliação e planejamento, registra e divulga as experiências do seu núcleo na rede, gerindo o estoque, a coleta, as encomendas e controlando a qualidade das sementes. Os núcleos coletores, por sua vez, estão ligados a uma casa de sementes (local de entrega, pesagem e armazenamento) da rede.

Em Nova Xavantina existem 18 coletores. “A gente sai em grupo de quatro ou cinco pessoas e vamos coletar no mato. Tem que olhar a árvore, ver se tá maduro o fruto. Aí coleta e traz pra casa, deixa acabar de secar e beneficia pra ficar pronto pra comercializar”, conta Vera. A entrega, segundo a mãe, é feita na casa de sementes onde são pesadas e armazenadas. “A gente dá pra pessoa que trabalha com isso, no caso a Milene, e ela vai olhar se tá limpo, se tem fungo. Porque se tiver semente suja ela contamina as outras. Precisa ter uma boa qualidade de semente”.

Milene recebe as sementes dos coletores na Casa de Sementes em Nova Xavantina (MT)
Milene recebe as sementes dos coletores na Casa de Sementes em Nova Xavantina (MT)

No começo, o trabalho da coleta era muito mais difícil. Do início ao meio do ano, por exemplo, existem poucas espécies que frutificam, mas do meio do ano até o final as sementes produzem praticamente tudo de uma vez. “Era muita correria. Quando eu chegava da escola e ela do serviço a gente pegava a bicicleta e ia atrás de semente. Aí carregava sacos, sacos e mais sacos de baru em cima da garupa da Monark”, comenta Milene.

O processo de coleta ainda é pesado – existem muitos obstáculos entre marimbondos e cobras, quedas e tropeços – e exige muita força de vontade. Mesmo assim, Vera diz que no fim vale muito a pena. “Muitas vezes a gente começa 7h da manhã e só para 7h da noite. Antes eu tinha uma bicicleta bem velha, mas aí depois eu comprei uma mais nova, depois comprei uma moto, arrumei a casa, depois comprei meu carro. Dá pra viver bem”.

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As sementes refazendo laços

O brilho nos olhos é visível toda vez que as duas começam a falar sobre o trabalho como coletoras, que envolveu muitas histórias e momentos únicos. Mais do que gerar renda, as duas admitem que a lição mais importante que a rede traz é a de refazer laços e unir famílias. “Meu pai tinha depressão antes de começar a trabalhar com a semente. Hoje ele tá totalmente diferente, porque ele vê uma utilidade na vida dele”. Segundo Milene, esse não é o primeiro caso; há várias pessoas que mudaram de vida depois do projeto. “Quer uma maneira da pessoa se sentir mais útil do que conservando o amanhã? E é o que a semente faz. Hoje eu tenho o meu pai próximo de mim, a minha mãe, os meus irmãos”.

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Entre um gole e outro de suco gelado de acerola pura, eu vou acompanhando aquela história com os olhos e ouvidos atentos. Aprendi que o projeto também ajudou a fortalecer a relação mãe e filha, no caso de Milene e Vera. “Antes minha mãe trabalhava como doméstica e mal tinha tempo pra mim. A minha vida inteira foi vendo ela o dia todo pra fora de casa cuidando do filho dos outros pra pôr comida na mesa. E depois que ela saiu do serviço pra entrar na Rede foi muito bom, porque a gente começou a trabalhar junto. A rede me deu minha mãe de volta e trouxe esse conforto”, explica Milene, emocionada.

Milene é estudante do curso de Biologia da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso) e também admite que deve à mãe a base do seu conhecimento e interesse sobre ecologia. “Minha mãe fala que aprendeu sobre a natureza com o pai dela, perguntando os nomes das árvores. Também aprendi assim, andando no meio do mato com ela. E ela é um poço de sabedoria”.

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Já está escuro, os grilos cantam em uníssono enquanto os mosquitos começam a zunir nos ouvidos e a atacar as minhas pernas. Eu e minha mãe começamos a observar o majestoso pé de mamoninha no quintal. Vera comenta: “No primeiro ano que eu comecei a coletar, a semente caiu e eu deixei. E agora essa árvore tá aqui linda, enorme. Eu sou louca por ela”. A mulher entrou pra rede em 2013, junto com a filha, e desde então o seu amor pelo trabalho com as sementes só cresceu. “Eu vejo que onde a gente já reflorestou, que eu ajudei a plantar, hoje já têm árvores grandes. É lindo de ver”.

Reciclando o que vem da natureza

A conversa flui. Minha mãe Beatriz é professora da Milene e estava me acompanhando para tirar umas fotos da entrevista. Aquele momento de mães e filhas cria uma atmosfera única de conexão entre universos tão diferentes, mas tão iguais. A brisa fria do mato sopra em nossos membros descobertos. A casa da Milene e da Vera fica em uma parte afastada da cidade, onde o cerrado se vê mais presente e, apesar da areia abundante, o ar é infinitamente mais fácil de se respirar.

Vera inicia sua reflexão: “A gente vive da natureza aqui em casa de dois jeitos: aproveitando a polpa dos frutos e trabalhando com a semente. A gente vende muito suco de polpa na feira. Tudo a gente reaproveita”. Quando Vera começou a extração da polpa, ela tinha apenas uma geladeira. Hoje já conta com quatro freezers cheios. “E não são todos que descobriram ou que têm paciência pra aproveitar os restos. Eu já cheguei a jogar fora uns 200 a 300 kg de polpa e agora eu aproveito tudo. Ano retrasado eu tirei mil polpas de caju”.

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Milene lembra que elas já andaram vários quilômetros para coletar murici, porque também aproveitam o fruto para vender a polpa na feira. “Quando a gente começou a vender na feira a gente vendia por R$ 2 a polpa de meio litro, aí o pessoal foi começar a comprar; foi um ano, dois anos, e começamos a fazer outros sabores. Hoje a gente vende a R$ 5 o murici e R$ 4 os outros sabores, como caju, açaí, buriti, mangaba”.

Mulheres que rompem preconceitos

Mais da metade da rede é composta por mulheres. A maioria delas indígenas. “Tem tudo a ver dizer que a rede tá funcionando por causa da força da mulher. O capricho da limpeza da semente, por exemplo, é a mulher que faz”, afirma Milene. Além disso, as mulheres indígenas têm seu próprio método de trabalho. “Elas abrem semente por semente; o cafezinho elas vão na peneira e abrem um por um e aquilo é muito difícil. Elas não querem quantidade, querem qualidade.”

Milene é uma jovem magra e baixa de sorriso puro e sincero. Pra quem não conhece, até poderia se atrever a dizer que ela faz o tipo “frágil”. Mas ela faz questão de quebrar os estereótipos de gênero ao mostrar a sua força e garra. “Pra quem fala que mulher não dirige, a gente dirige muito. Pra quem fala ‘ah, mas mulher não pega peso’, a gente pega sim e muito. Sobe em árvore, em jatobá. Nos indígenas são só mulheres que coletam, por exemplo. E os homens ficam se perguntando ‘coletar 200kg de tamboril, vocês vão conseguir?’, e a gente consegue”.

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De botina, calça e camiseta larga e um pano na cabeça, as duas vão ao trabalho sem medo de serem julgadas. Mas admitem que percebem olhares de desprezo. “Você sente um certo preconceito quando te veem com aquela roupa grosseira, porque você não tá com a unha feitinha e o cabelo feito… mas uma coisa que a minha mãe deixou em mim é que não importa a opinião dos outros, se tá de pé descalço, cabelo desarrumado… tem que ter é vergonha de roubar. E eu não me envergonho do meu trabalho”, reflete Milene.

Semeando as próximas gerações: os Jovens da Rede de Sementes do Xingu

“O que serão das nossas sementes?”, esse é o tema da discussão do próximo documentário sobre as mudanças climáticas, que será lançado em homenagem aos 10 anos da Rede de Sementes do Xingu. E dessa vez são os jovens de 12 a 24 anos que estão encarregados de coletar material. Milene explica que houve uma pesquisa qualitativa com os coletores mais velhos. “Perguntamos o que que tá diferente, e a gente teve várias respostas do tipo, ‘antigamente chovia mais, hoje chove bem menos’, ‘tal fruto dava em tal época e agora tá mais adiantado ou mais atrasado…’”.

Esses jovens indígenas, agricultores e urbanos atuam na rede como pequenos gestores, auxiliando os elos. “A gente ajuda na comunicação, nos cálculos, porque como os elos são pessoas muito simples e mais velhas, alguns têm mais dificuldade pra mexer com computador e números, e aí os jovens vem pra fazer esse apoio”, explica a estudante, que também trabalha como gestora do seu grupo e é responsável pela casa de sementes.

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Milene demonstra preocupação sobre o individualismo que assola a nova geração e as consequências que isso poderá acarretar ao meio ambiente. “A juventude não tá preocupada com a natureza, porque não tiveram uma base que despertou essa atenção, esse interesse. Tá muito só em desfrutar a juventude e esquecer da sua velhice”. E a rede proporciona uma importante base conscientizadora, permitindo a troca de experiências com outras gerações.

Vera conclui o pensamento lembrando da importância de repassar essa consciência ambiental para as próximas gerações. “Se a gente não passar esse conhecimento pros mais novos, daqui a pouco os idosos não vão aguentar mais, e aí quem que vai saber onde é aquela matriz, o que fazer? A gente tinha que pôr tudo isso no papel. Porque, daqui a pouco, quem é que vai saber onde buscar a solução?”.

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Jornalista mato-grossense formada pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e aluna de mestrado no programa de Divulgação Científica e Cultural da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

2 Comentários

  1. Texto incrível de uma história muito inspiradora! Parabéns ao projeto e a todas essas mulheres guerreiras que lutam hoje pelo amanhã de todos nós! <3

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