Vamos falar de teatro mato-grossense. Surpreendente o momento ímpar que estamos vivenciando em Cuiabá. Dois espetáculos que assisti recentemente me impactaram muito. “Carne” e “Inhamor”. Um pelo excesso, outro pela economia de elementos, ambos em espaços que explodem a ideia centralizada e centralizadora do velho palco italiano. O deslocamento do teatro para outros espaços mostra a força e a adaptabilidade dessa linguagem que há muito vem quebrando parâmetros e passando por constantes provas de sobrevivência. Já mataram o teatro, já mataram a pintura, já mataram a literatura. Sim, os profetas do caos sempre sobrepõem uma arte sobre outra arte e assim sucessivamente a cada novidade tecnológica ou de linguagem e lá vem a morte estampada nas bocas mais escandalosas e precipitadas.

A Carne – Foto: Fred Gustavos

A fotografia não matou a pintura, o cinema não destruiu o teatro e muito menos o livro eletrônico substituiu o velho e bom livro que continua despertando um prazer imensurável de manusear suas folhas que permanecem com a aura mágica. Apesar de ser um produto industrial o livro continua impregnado de magia e poder.

Inhamor – Foto Fred Gustavos

Thereza Helena com a peça Inhamor vai representar em Recife no 24° Janeiro de Grandes Espetáculos, que é de caráter nacional e bastante representativo. Leva a peça como parte do O Levante – em cena, um movimento da galera de quatro grupos, a própria Thereza, o Fúria, Tibanaré e a Cia Solta, que vem criando e produzindo sem parar em Cuiabá e espalhando essa arte cênica por aí. A montagem me fascinou, lembro-me de ter lido um artigo de Marianna Marimon que já tinha despertado em mim o desejo de assistir Inhamor. Não me decepcionei. Digo isso por que raramente vou ao teatro. Acho meio chato, desculpando a ignorância, mas gosto muito de dirigir teatro. Uma contradição? Sei lá. Mas gosto muito quando sou surpreendido. As últimas peças que vi por aqui e que me chacoalharam a cabeça foi com o Fúria. Aliás, tive até a oportunidade de colaborar na trilha sonora de um espetáculo deles. E já tenho data marcada para assistir no início de fevereiro, O Pirata e Deus, Theatro Fúria, com Péricles Anarchos e Carol Argenta.

Mas falemos de Inhamor. Muito chocante ver Thereza sozinha comandando uma sessão de feitura de um pão enquanto narra histórias da vida da personagem que em um momento se recorda quando ganhou um biquíni e que escondeu aquele presente bem lá no fundo da gaveta (com vergonha dos outros, de si mesma?) por não se sentir bem em usar aquela peça pelo simples motivo de que era gorda, sofria bullying por isso, enfim, tinha vergonha do próprio corpo. É linda a cena quando ela espalha farinha de trigo sobre a mesa e reproduz a areia da praia, escreve nomes na areia, enquanto canta, “na beira do mar, é maré cheia ôô, mareia ôô, mareia…” O teatro tem essa característica única, a peça nunca se repete, cada interpretação é uma sessão viva e carregada de novas nuances, seja por quem esteja presente, seja pelo estado de espírito do ator, isso torna a linguagem cênica única, que se realiza ali, na hora, com a presença do outro.

Mas a atriz e diretora e dramaturga, choca quando pede que alguém que está sentado à mesa para celebrar o pão, celebrar o teatro, a arte da celebração, é aqui que o teatro cresce quando compartilhamos emoções, e quando ela pede para desamarrar um espartilho usado como modelador do corpo, a pele marcada pelos fios de arame, parece mais uma câmara de tortura, caramba, impossível não ficar comovido. A emoção ali chega a duzentos mil volts. Cara, mexe com nossas estruturas emocionais ver o sofrimento do outro pelo fato de não fazer parte daquele padrão de beleza cantado em prosa, verso, imagem, som, por todos os lados assistimos a cantilena a repetir os enquadramentos e colocar as pessoas em situações degradantes. Mas ela se supera, amadurece e cresce, se afirma enquanto mulher, se liberta. A felicidade está ali na possibilidade de compartilhar, de celebrar com as pessoas em um ritual que está na base de nossas vidas, o pão como símbolo do alimento e do sagrado, à mesa para fazer o pão, celebrar o teatro, a arte da celebração, quando compartilhamos emoções e juntos podemos refletir sobre a condição humana nesses tempos de falta de amor e de solidariedade entre as pessoas.

Ao final dedica o trabalho para um dos nomes mais significativos do teatro mato-grossense, o meu amigo Luiz Carlos Ribeiro, que partiu recentemente, mas deixou por aqui sua marca, sua história de vida tão dedicada ao teatro e à cultura. Com certeza deve estar vibrando com esse momento ímpar que ajudou a construir, ao lado de nomes como Chico Amorim, Liu Arruda, Meire Pedroso, Ivan Belém, Glória Albuês, Maurício Leite e outros.

Carne – Foto: Fred Gustavos

Sobre a “Carne”, aí é outra história, depois volto aqui para saborear esse banquete.

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