Por Túlio Paniago*

A sopa fria é amornada pelo calor da boca cujo paladar é tão insosso quanto a sopa. Boca de lábios ressacados pela falta de saliva alheia. Só saliva da sopa insossa da própria boca. A boca, caduca de desuso, assopra a sopa fria.

Você come essa mesma sopa há séculos, diz ela enquanto limpa da borda da boca os restos da mesma sopa, é um gosto tão sem graça que nunca enjoa. Palavras vazias escorrendo pelos cantos das bocas cheias de sopa.

Ela limpa o bigode onde o suor se mistura com a sopa. Da testa dele minam gotículas. Uma delas emerge da pele e desliza lentamente até descair pelo lado direito do nariz e desembocar na boca. Os olhos carentes de luz própria refletem a artificialidade luminosa da TV de LED. Olhos alheios a tudo que for alheio. Olhares insípidos despovoados de lágrimas e destemperados de sal.

Uma enorme mosca pousa na borda do prato. Os olhos atentos à TV a ignoram. Ela se aproxima da sopa e estica aquele canudinho que serve pra fazer a sucção dos alimentos. E assim que toca o líquido, a mão do homem assenta a colher no fundo do prato, fazendo com que a superfície pastosa oscile levemente. A mosca sai voando despercebida. Talvez a repentina desistência do inseto tenha se dado em partes por este suave movimentar da sopa, mas sem dúvida o dissabor ao qual se expôs foi mais determinante.

Na pia se vê um amontoado de pratos com resíduos de sopa. Os que formam a base da pilha estão há mais tempo e são povoados por vermes que se alimentam da putrefação. Este estado da sopa, embora emita um odor insuportável, passou por algum de tipo de fermentação que lhe garante um sabor qualquer. Absolutamente desagradável, é claro, porém ainda assim um sabor. E ao paladar de vermes talvez seja mais atrativo do que a nulidade da sopa em seu estado natural.

Tudo é insosso durante o almoço. Nem a violência gratuita a qual se expõem lhes rouba o apetite habitual. De fato, é mais hábito do que fome. Talvez nunca sequer tiveram qualquer apetite para lhes ser roubado. Na TV, elemento ritualístico do medo que comungam, um moço roubado assassina o ladrão. O corpo sangrando, a propriedade sagrada.

Pinga sobre a sopa duas gotas. Uma de sangue do moço matado a esguichar pela TV. A outra gota, de uma baba espessa, cai da boca escancarada de apatia e tédio. As duas gotas se misturam e se anulam dando à sopa o característico destempero que lhe ausenta o sabor.

 

*Túlio Paniago Vilela é jornalista, escritor, da cidade de Mineiros, e vive em 
Cuiabá desde 2010.

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